A vida selvagem num grande centro urbano

A minha paixão são as montanhas. Estão sempre presentes quando planeio viagens e pelas “eleitas” caminho com regularidade. A expectativa de desfrutar de grandes momentos com a natureza selvagem é uma constante. Mas quem privilegia ambientes serranos sabe que, muitas vezes, regressamos do monte sem ter nada de muito especial para registar pois os avistamentos tornam-se mais raros, à medida que se ganha altitude. No entanto, quando se dão, as cotas maiores normalmente valorizam-nos.

Mas se as montanhas são o meu destino habitual, é na cidade que vivo. E nela também caminho, acompanhando com curiosidade a evolução da muita vida selvagem que aqui se manifesta. E há motivações crescentes que justificam este interesse.

Pardais, melros-pretos, muitos pombos e gaivotas, e rolas-turcas mais recentemente, foram durante muito tempo as aves dominantes nos meandros do Porto. Como em tantas outras cidades portuguesas, também aqui o betão das novas urbanizações fez desaparecer de uma forma explosiva, abusiva e desordenada a vegetação de pequenos jardins e quintais, de logradouros onde algum arvoredo mais ou menos abandonado, persistia. Claro que neste crescendo de betão e de muito solo impermeabilizado, outras espécies de vida selvagem foram coexistindo e sobrevivendo. Mas, por serem raras e discretas, só se revelavam aos mais atentos e interessados.

 

 

Hoje, depois de muitos erros cometidos nas grandes urbes, há que reconhecer que a situação tem mudado, para melhor. Os melros continuam a nidificar nos jardins da área onde continuo a residir, num dos limites do centro da cidade. Mas agora não estão tão sós. Toutinegras-de-barrete-preto, chapins-reais, chamarizes, piscos-de-peito-ruivo, várias espécies de felosas, verdilhões-comuns, estrelinhas-de-cabeça-listada, pegas-rabudas, gaios, trepadeiras-comuns, bandos de estorninhos, observam-se e ouvem-se com uma regularidade diária.

Há uns anos atrás não antevia que peneireiros-vulgares pudessem nidificar nestes quarteirões, mas o seu comportamento e uma presença constante, não deixam dúvidas.

Claro que o retorno de um maior investimento na observação da natureza citadina, à medida que o interesse pessoal foi crescendo, desvirtua uma avaliação correcta da evolução realmente verificada. Mas a percepção de que a situação melhorou, não se baseia num simples acompanhamento de bairro. Nas últimas décadas, várias intervenções têm contribuído para que a realidade seja agora mais interessante.

A mudança em toda a área metropolitana do Porto terá beneficiado com alterações introduzidas no modo de criar e manter os espaços verdes públicos, na forma de os conceber, nas espécies arbóreas e arbustivas em que se tem investido (azevinhos, bétulas e muitas outras folhosas). A melhoria da qualidade da água terá cumprido o seu papel e o comportamento e o interesse dos cidadãos pela vida ao ar livre também evoluíram no bom sentido.

Mas novos cenários emergiram com a concretização de projectos maiores. O avistamento de espécies selvagens, impensáveis ainda há poucos anos atrás, tornou-se possível visitando dois espaços em especial, onde a natureza e sua vida selvagem foram bem tratadas. O estuário do rio Douro transformou-se há quase uma década numa reserva natural local por iniciativa do Parque Biológico de Gaia e da Câmara Municipal da mesma cidade e na zona ocidental do Porto cerca de 80 hectares de terreno dão forma ao seu Parque da Cidade, um desejo antigo, criado há quase três décadas.

Defronte dos observatórios de aves do Douro, águias-pesqueiras, flamingos, corvos-marinhos, guarda-rios, garças-reais e garças-brancas, piscos-de-peito-azul, são algumas estrelas entre as largas dezenas de aves limícolas e migradoras que ocorrem num estuário também sobrevoado por falcões-peregrinos e peneireiros-vulgares. Para além do estuário propriamente dito, o interesse da reserva expande-se por uma faixa de terreno marginal, um pequeno vale situado do lado de Gaia, coberto por uma mancha de silvado, abrigo e zona de alimentação e de reprodução de aves e de outras espécies selvagens que por estes dias viram o seu mundo devastado para que nele se possa em breve realizar mais um festival de música de verão. Esperando que o bom senso prevaleça e que a situação seja rapidamente revertida, impõe-se uma recuperação do que foi agora destruído e a devida integração definitiva deste pequeno, mas muito importante reduto, na reserva natural já assumida pelos cidadãos de Gaia e dos concelhos limítrofes.

O Parque da Cidade do Porto também se tornou num importante refúgio de vida selvagem em que os seus protagonistas aprenderam a conviver com os muitos visitantes que na sua maioria respeitam os valores naturais em presença. Foi bem concebido com o terreno modelado de uma forma que amortece a propagação do ruído e cria alguma compartimentação do espaço sem recurso a outras barreiras que não sejam as naturais. Cortinas de vegetação arbustiva, núcleos de arvoredo com maior envergadura, valiosos silvados – abrigo e alimento de um grande número de pequenas espécies selvagens, nomeadamente mamíferos e aves passeriformes – definem diferentes clareiras recortadas num conjunto harmonioso, diversificado e esteticamente apelativo.

Prolongando-se até ao mar, uma particularidade que torna este parque urbano ainda mais singular, alberga muitas das espécies já descritas para a foz do rio Douro que aqui beneficiam também de dois grandes espelhos de água, há muito naturalizados pela vegetação que continua a consolidar-se em todo o perímetro deste parque citadino. Construir a lista completa das espécies faunísticas que o habitam é um desafio motivador.