Garganta do Escuaín

No vale das Gargantas de Escuaín, nos Pirinéus aragoneses

A grandiosidade da natureza e da vida selvagem que caracteriza Ordesa e Monte Perdido justifica uma terceira etapa no nosso roteiro neste espectacular parque nacional dos Pirinéus aragoneses.

 

Gargantas de Escuaín é o sugestivo nome por que é conhecido o vale acidentado que hoje vamos percorrer ao longo de um motivador percurso circular. Na montanha, as abordagens em circuito fechado nem sempre são possíveis. Os «trekkers» são por regra obrigados a percorrer o mesmo trilho no regresso ao ponto de partida, a menos que disponham de apoio logístico que os «deixe e recolha» em locais diferentes, ou que procedam a uma distribuição de meios de transporte que lhes permitam voltar ao local onde ficou a primeira viatura. Uma jornada de montanha revela-se, no entanto, mais motivadora, quando toda ela é feita num percurso em que não se tem que inverter a marcha a meio da caminhada.

Provenientes de Escalona, uma das povoações do vale dominado pela enorme Peña Montañesa, subimos a montanha, ainda de carro, por uma estreita e sinuosa via que, a dada altura, cruza a pitoresca e histórica aldeia de Puertolas.

Dois milhafres-reais são o primeiro avistamento do dia, num cenário que cresce à medida que ganhamos altura.

Depois de atravessarmos um bosque denso, a estrada termina na aldeia de Escuaín. Um pequeno centro de interpretação onde se dá destaque ao quebra-ossos (ver crónica anterior) é visita obrigatória para quem pretenda conhecer esta espécie, principalmente para aqueles que decidam empreender um pequeno trajecto de meia hora, que a partir daqui os levará a passar por uma sucessão de miradouros debruçados sobre o vale alcantilado onde, também esta grande ave necrófaga, é facilmente observável.

 

Garganta de Escuaín

 

Iniciamos o percurso por entre as ruínas da aldeia abandonada. Aparentemente, já que são muitos os gatos com que deparamos logo à entrada. O caminho sobe por entre um arvoredo diversificado. Até que, uns quilómetros mais à frente, a vegetação de porte arbóreo torna-se esparsa entre prados supra-florestais e lameiros abandonados que permitem que o campo de visão se amplie. À nossa esquerda elevam-se encostas de declive acentuado mas de relevo suave, sem escarpas, enormes pastagens onde se avistam veados e camurças mas que também alimentam gado bovino. À nossa direita o cenário não podia ser mais contrastado. Não muito longe do trilho o arvoredo cessa de repente, quando o chão se afunda num ciclópico degrau por cuja base corre o rio Yaga. No topo do outro degrau, do lado de lá do rio, bosque e paredes lisas sucedem-se na vertical, ao longo de centenas de metros. Sob elas andaremos mais tarde.

O trilho vai-nos encaminhando para uma pequena ponte, mas antes de mergulharmos de novo no bosque, passamos por um curral acima do qual um cercado de grandes dimensões constitui um dos alimentadores com que se apoia a população de quebra-ossos deste sector da cordilheira pirenaica. Somos sobrevoados por uma parelha de abutres do Egipto que também aproveita esta oferta de alimento.

Descemos então em direcção ao rio do qual ficamos mais próximos quando atingimos a ponte de Los Mallos. O Yaga passa sob ela no fundo de uma fenda com dois ou três metros de largura!

 

Rio Yaga

 

Um canal natural aberto pelas águas que ciclicamente se tornam furiosas após cada degelo da neve acumulada nos grandiosos circos que dominam a cabeceira do vale.

Da ponte consegue-se ver, lá bem no alto, o impressionante Circo de Gurrundué.

 

Circo de Gurrundué

 

Um corço, mais à frente no caminho, desvia momentaneamente a nossa atenção da paisagem.

Durante algum tempo, avançamos dentro de um bosque misto de folhosas e pinheiros. Sempre a ganhar altura, há que vencer troços de desnível acentuado. É o preço a pagar para atingirmos uma cota onde o trilho segue mais próximo de um rebordo da escarpa o que nos permite apreciar os profundos meandros da Garganta.

Cruzamos os Barrancos de La Garganta e o Angonés. Por eles despenham-se águas que mal se vislumbram tal a profusão de vegetação, sempre muito interessante pelos endemismos e outras plantas que aqui ocorrem. Uma oportunidade também para encontrar o tritão-pirenaico.

Pouco a pouco aproximamo-nos de Revilla. Desviamo-nos do caminho para baixar aos miradouros que existem nesta vertente do vale, mais ou menos defronte dos da manhã. Grifos, sempre muitos grifos, mas também quebra-ossos e milhafres-reais enchem o céu. Próximo desta aldeia encaminhamo-nos para a senda que nos permite descer ao rio, atravessá-lo e deste modo voltar a Escuaín.

A área do Parque Nacional de Ordesa e Monte Perdido não é muito extensa. Mas dentro dele ou nos seus limites muitos percursos de alta-montanha ficam por descrever. O vale de Pineta e a linha dos cumes desde o Taillon até Marboré passando pela Brecha de Rolando e pelo próprio Monte Perdido (3355 metros de altitude), abordáveis tanto pelo lado espanhol como pela vertente francesa, obrigariam a descrever o belo vale de Bujaruelo, o espectatular Circo de Gavarnie, a Gruta de Casteret, o Pequeno Lago Helado e o de Marboré e os praticamente desaparecidos glaciares que envolvem os picos mais elevados. Falaríamos também de encontros com arminhos, gralhas-de-bico-vermelho, gralhas-de-bico-amarelo, trepadeiras-dos-muros, pardais-alpinos, ferreirinhas-alpinas e, sorte suprema, de um possível mas raro avistamento de perdiz-nival.

É nisto que penso sempre que retorno a Ordesa.