lobo ibérico
Lobo ibérico conservado no Museu de História Natural, Lisboa. Foto: Joana Bourgard

O que significa ser “selvagem”?

Selvagem. Diz-se do que vive na selva, do que é silvestre, montês, agreste. Mas o ambiente urbano em que nos fomos isolando do mundo natural, levou a que à palavra selvagem se associe também a ideia de ignorância, de incivilidade, de falta de cultura, de rudeza.

 

Apesar do incomensurável número das extraordinárias conquistas que o avanço da civilização tem concedido, a nossa qualidade de vida continua a depender de uma natureza arredada da pressão humana, erma, despovoada, deserta nesse sentido, em suma, do que a língua inglesa sintetiza na palavra wilderness. Selvagem é muito mais do que essa imagem, boa, que nos vem à mente quando pensamos em espaços bravios. Neles sentimos liberdade, beleza, diversidade em equilíbrio, sustentabilidade, serenidade, tudo sensações condimentadas por doses de adrenalina que crescem com a grandeza e a pureza do território silvestre que sentimos, que respiramos.

Associar liberdade ao conceito de selvagem é algo tão imediato que dispensa divagações. Já a beleza e os demais atributos que referi, têm que se lhe diga.

A espontaneidade com que a natureza bravia progride, suportada num processo evolutivo em que as espécies interagem num equilíbrio dependente de um grande número de parâmetros variáveis, gera composições estéticas de aparência anárquica e de uma harmonia extrema. Não se pode negar que haja beleza numa qualquer exploração silvícola em que o arvoredo é milimetricamente alinhado em grandes extensões de terreno. Mas a ausência flagrante de biodiversidade numa (mono)cultura deste tipo, é facilmente percepcionada por todos.

Passemos para o outro extremo. Os mais famosos jardins botânicos do mundo também são enaltecidos pelo prazer e admiração que muitos dos seus recantos despertam a quem os contempla. Porém, a quantidade de espécies presente num qualquer espaço não é determinante para definir o seu carácter selvagem, uma realidade que muitas vezes gera confusão quando se aborda o conceito de biodiversidade, hoje em dia muito difundido.

A natureza selvagem não precisa do homem actual, civilizado. No tempo em que lidávamos com ela da mesma forma que as espécies selvagens, certamente que cumpririamos, de uma forma natural, os mesmos papéis, como a disseminação de sementes, por exemplo. Selvagem é, por definição, o que não carece de intervenção humana. A natureza evolui para estados culminares – climax – onde as espécies convivem numa interdependência em equilíbrio, sujeitas a muitas variáveis – latitude, altitude, relevo, água, clima – algumas, consequências de outras, associando-se por isso de forma diversa nas várias regiões que caracterizam o nosso planeta. Neste estado a natureza sustenta-se, não se degrada, reage a fenómenos extemporâneos, contrariando-os ou adaptando-se. E permanece bela.

Por outro lado, é fácil imaginar o que acontece a uma exploração florestal ou a um parque urbano sem uma intervenção regular do homem, seu criador. E o que seria de um jardim botânico se deixado ao abandono?

As áreas protegidas surgiram nos finais do séc. XIX nos Estados Unidos, com o objectivo de – além de um carácter lúdico, de proporcionar às populações urbanas o contacto com a natureza – garantir a salvaguarda futura de territórios verdadeiramente selvagens. Em parques nacionais tão extensos como os norte-americanos, a delimitação de áreas interiores, livres de qualquer tipo de usufruição humana, resultou numa tarefa bem mais fácil do que na Europa, mais populosa e fragmentada.

Há décadas atrás Portugal importou o conceito e com ele (também) criamos as reservas integrais. Mas, salvo excepções muito pontuais e diminutas, a sua salvaguarda não foi alcançada, mesmo na Peneda-Gerês, o único parque nacional do nosso país. Deixou-se cair o objectivo dos santuários naturais para preservação e estudo dos valores naturais, para prevalecer a ideia de que o que não é usufruído, de imediato, pelo homem, não merece ser preservado. Em territórios diminutos e desprotegidos, a degradação é uma realidade inevitável que se agrava com o tempo.

Hoje em dia, árvores de maior porte e longevidade estão nos centros urbanos e não na “natureza” (com a agravante de serem maioritariamente de espécies exóticas). Mais acentuada e penalizadora é a sua não ocorrência formando manchas espontâneas que se deveriam destacar no conjunto das demais espécies naturais.

Portugal tem uma carência extrema de espaços naturais intocados. Num país que se diz crescentemente despovoado, com importantes extensões de território, abandonado, a ideia de preservar a natureza pela natureza não pode ser apenas um sonho idealista de quem sente a ausência de wilderness no seu país.

Quem paga a sua concretização, questionarão mesmo os que defendem a necessidade da implementação de serviços de ecossistemas para suportar a sua preservação? Necessariamente que os mesmos que aceitam contribuir para promover a cultura, para salvaguardar os monumentos nacionais ou o património imaterial. A verdadeira questão é outra, a de saber como valorizamos o património natural. E também se estaremos conscientes da necessidade de respeitar as exigências ditadas pela salvaguarda da natureza selvagem, numa sociedade que cada vez dispõe de mais meios, facilitadores de uma usufruição sem limites.

A natureza que actualmente nos rodeia precisa do homem para que, pelo menos numa parte do nosso espaço comum, lhe seja devolvido o lado selvagem sem o qual não existe na sua plenitude. Esse desígnio que nos deve mover, muito em consonância com a mensagem da WILDER, será o tema da próxima crónica.