Como é escrever um livro sobre a guerra entre homens e lobos

A guerra entre homens e lobos até pode não ser conversa de café ou tema para a mesa do jantar. Estamos longe e não vemos como isso tenha a ver connosco. Até que um jornalista foi a essa guerra e nos trouxe esse mundo para dentro de casa. Escreveu “Malditos. Histórias de homens e de lobos” para nos ajudar a compreender. Em entrevista à Wilder, Ricardo J. Rodrigues diz que não tomou um dos lados. Tomou o lado dos dois.

  

Wilder: O escritor norte-americano Aldo Leopold escreveu nos anos 40: “apenas a montanha viveu tempo suficiente para ouvir, de forma objectiva, o uivar de um lobo”. Como foi para um jornalista escrever um livro sobre o lobo-ibérico?

Ricardo J. Rodrigues: Tentei ser o mais objectivo possível e relatar os factos como eles eram. Não narrei as minhas experiências de ver lobos nem coisas que me dissessem directamente respeito. Claro que nenhum jornalista é desprovido de opinião; a pura objectividade é um mito. A única forma é tentar relatar as coisas da forma mais rigorosa e séria possível, com o máximo de elementos recolhidos. O que está escrito neste livro é rigoroso, justo e correcto.

 

W: Conseguiste não tomar lados nesta relação entre o mundo rural e o lobo?

Ricardo J. Rodrigues: Se calhar tomei o lado de ambos, tentando percebê-los. São dois exércitos que se digladiam mas ambos estão decadentes e acossados, são perseguidos. A montanha deixou de servir os lobos tanto como os vales deixaram de servir os homens. E essa ideia faz-me perceber a tragédia de uns e de outros. Porque ambos estão numa luta desesperada pela sobrevivência.

 

W: Passaram nove anos desde que escreveste o livro “Bitcho Bravo”, também sobre o lobo-ibérico. Mudou alguma coisa na forma como escreves?

Ricardo J. Rodrigues: Seguramente. No primeiro livro escrevi bastante sobre aquilo que sentia ao ver os lobos e aqui tentei despir-me disso. A minha experiência, enquanto citadino que vai ver uns lobos, teria uma importância praticamente nula para os potenciais leitores. O jornalismo é um exercício de cidadania para as pessoas serem esclarecidas a fim de poderem formar o seu próprio julgamento. Acho que este livro direcciona muito menos as pessoas e permite-lhes mais fortemente formar as suas próprias ideias. Espero que fiquem mais esclarecidas sobre esta decadência do mundo rural, a extinção da fauna selvagem e esta ideia de progresso que não está a servir nem os homens nem os animais. É um tema de uma invisibilidade visível. Quis chamar a atenção para isso e acho que este livro fá-lo muito melhor do que o anterior.

 

W: E qual poderá ser o papel de um livro como este para começarmos a prestar mais atenção a essa “invisibilidade visível”?

Ricardo J. Rodrigues: O trabalho do repórter é sempre o de tentar colocar as pessoas dentro da história. Quem ler o livro vai entrar num mundo onde não está habituado a entrar e do qual foge. Vai colocar-se no papel daquelas comunidades mas também no daquelas populações animais, de uma montanha que está a gritar baixinho há tanto tempo. Colocar o leitor lá pode criar nele a consciência desta guerra silenciosa que se passa na floresta portuguesa e para a qual não está a haver atenção. Não quero ter a ambição de que o livro se torne um manual de vida selvagem, não é isso.

 

W: E como fizeste para mergulhar o leitor na história?

Ricardo J. Rodrigues: Tento sempre fulanizar as histórias. Prefiro contar a história desta decadência do exército dos lobos focando-me na história de uma loba. Prefiro contar a história da decadência de uma comunidade rural focando-me numa aldeia e na criança de uma aldeia, em particular. Falo sobre esta guerra de homens e lobos contando a história de uma povoação num enorme litígio com uma alcateia, ou a história das possibilidades de conservação focando-me no exemplo de três crianças que salvaram um lobo. Hoje, a realidade e a velocidade da informação desligam-nos do mundo rural. Acho que o que um livro destes pode fazer é retomar essa ligação.

 

W: E uma vez ligado, queres pôr o leitor a pensar em quê? Que questões levanta este livro?

Ricardo J. Rodrigues: Acho que o livro levanta bastantes questões. A principal será esta ideia do que é o progresso e que foi imposta de fora para dentro, do litoral para o interior, muitas vezes de Bruxelas para o interior. Tenho dúvidas quando destruímos habitat selvagem e enchemos as nossas montanhas de barragens e parques eólicos. Esta ideia de progresso serviu-nos? É esta ideia de progresso que vale a pena manter, apesar de estar a esvaziar os campos de pessoas, a esvaziar as aldeias de braços? É um país que queremos concentrado em dois grandes núcleos ou numa faixa litoral em que o resto está abandonado porque se tornou um deserto árido para as populações humanas e animais? É isto que eu quero pôr as pessoas a pensar: que ideia de progresso é esta que nós criámos e até que ponto não foi ela uma ilusão. E se a podemos inverter.

 

W: E se calhar pensarmos que há outros tipos de progresso…

Ricardo J. Rodrigues: Exactamente. Temos micro-fenómenos de pessoas que vão da cidade para o campo atrás desta ideia de sustentabilidade e de equilíbrio, onde há espaço para a fauna, flora e para a população humana florescerem. É isso que eu gostava que as pessoas pensassem no final de lerem o livro. Temos exemplos de que as coisas podem funcionar em conjunto. E não é por acaso que a extinção dos lobos e a dos pastores são paralelas. Digo no livro que um ódio tão grande só pode derivar de um amor muito profundo. E acredito nisto. Os lobos e os pastores são dois lados da mesma moeda. E eles, apesar de lutarem com o outro lado da moeda, rolam juntos na mesa.

[divider type=”thin”]Agora é a sua vez. Por que não escrever sobre a natureza que o rodeia? Ricardo J. Rodrigues deixa sugestões que o podem ajudar a começar.

Sobretudo, acho que devemos ouvir quem sabe e cingirmo-nos aos factos para sermos rigorosos. Acredito que não podemos despir a ideia da natureza do património humano que a rodeia. Para que a escrita funcione não podemos isolar os animais num gueto para a vida selvagem. Mesmo numa savana em África há uma relação entre humanos e animais. A maneira de fazermos uma escrita que seja realmente fiel ao que se passa é ver o filme todo e narrá-lo com rigor. Um trabalho válido surge quanto mais nos despojarmos das nossas opiniões e nos cingirmos aos factos, com o máximo rigor e o maior número de elementos. Assim estaremos a dar liberdade às pessoas para pensarem por si próprias”.

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MalditosLivroRicardo J. Rodrigues, 38 anos, é jornalista na revista “Notícias Magazine”. Em 2006 escreveu o livro “Bitcho Bravo. A incrível história do português que viveu 10 anos com lobos” (Dom Quixote). Em Março deste ano publicou “Malditos. Histórias de homens e de lobos”, pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Parte do preço do livro reverte para o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico, na Malveira da Serra.

 

 

MALDITOS. HISTÓRIAS DE HOMENS E DE LOBOS

Por Ricardo J. Rodrigues

Fundação Francisco Manuel dos Santos

Preço: 3,5 euros

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.