Luís Quinta e Ricardo Guerreiro vão contar-nos uma nova história

Depois de fotografar e filmar o “Arrábida, da serra ao mar” (2013) e “Almada, entre o rio e o mar” (2014), Luís Quinta e Ricardo Guerreiro estão agora a meio das gravações de um novo documentário de História Natural. O Alvão e o Marão são o novo palco de enredos cheios de drama, acção e suspense. A borboleta-azul-das-turfeiras e a vespa-das-areias estão entre os protagonistas.

 

Wilder: O Luís fotografa o mundo natural há mais de 25 anos; o Ricardo há dez anos. Com tantas paisagens e espécies já fotografadas e filmadas de Norte a Sul, na terra e no mar, a natureza ainda é capaz de vos surpreender e cativar?

Luís Quinta: Sim, constantemente! Há sempre muito para aprender e testemunhar. É nessa perspectiva que vamos para o campo e para o mar, sempre com a ideia de que vamos ver o que esperamos (porque pesquisamos, estudamos os sujeitos e o terreno) e prontos para o inesperado! O que conhecemos é ridiculamente pequeno para o que podemos ainda ver nesta vida. E além do que podemos ver de novo, há locais e animais que não nos cansamos de rever! Quem se cansa de ver baleias? Golfinhos? Águias? Entre muitos outros!

Ricardo Guerreiro: Sem dúvida. Não acontece todos os dias, mas também não é uma raridade, andar no campo e descobrir um bicho do qual não conhecia a história e depois de investigar ficar abismado com a biologia ou algum comportamento.

 

Wilder: E no Alvão/Marão, que histórias incríveis mais vos surpreenderam?

Luís Quinta: Há histórias que conhecemos e queremos retratar, há outras que nos surgem sem aviso, e há algumas que, embora surpreendentes, não as conseguimos registar! Até ao momento, a mais incrível terá sido a das vespas…

Ricardo Guerreiro: No Alvão encontrámos uma colónia de vespas-das-areias. Quando olhei a primeira vez, achei piada e comentei com o Luís que estas vespas pousavam e começavam a escavar. Depois estava a fazer um plano do que seria só uma coisa visualmente engraçada, a vespa a escavar, e do nada a vespa desaparece para dentro da terra. Depois de mais algumas fazerem o mesmo estávamos intrigados pois elas escavavam e, de repente, desapareciam para dentro de um buraco. O Luís investigou e descobriu uma história incrível de reprodução deste animal… para ver no filme. Ficámos bem espantados com esta estratégia de sobrevivência e com as capacidades deste pequeno animal.

 

Wilder: Nesta fase estão a meio das gravações. Que imagens mais gostaram de captar e quais as mais difíceis?

Ricardo Guerreiro: Até agora, as imagens que mais gostei de captar foram as de grande intimidade com aves. Acompanhámos a reprodução de um casal de melro-de-água e de tartaranhões (rapina de médio porte).

Luís Quinta: Filmar formigas com 3-4mm é sempre difícil, mesmo com a melhor tecnologia, o melhor equipamento e muita paciência. Os animais são pequenos e rápidos e as profundidades de campo são sempre muito reduzidas, o que nos dificulta o foco. Se adicionarmos uma iluminação mais cuidada (luz não directa) e cenários de ambientes subterrâneos, então a tarefa é complexa e difícil. Grande parte da vida da borboleta azul das turfeiras é passada debaixo de terra! É uma história de vida incrível que estamos a trabalhar com detalhe.

 

Libeloide no Alvão. Foto: Luís Quinta
Libeloide no Alvão. Foto: Luís Quinta

 

Wilder: Quais os principais ingredientes de um documentário sobre História Natural e o que o distingue de outros documentários?

Luís Quinta: As bases de um bom filme são iguais em todos. Nos filmes de História Natural o que varia são os sujeitos. Enredos, drama, acção, amor, sexo, inesperado, suspense, tragédia, sucesso e final feliz, estão tipicamente num bom filme de História Natural. Os bons planos, os típicos “postalinhos”, são bonitos de se ver mas não passam disso. É necessário muito mais para um filme resultar.

Ricardo Guerreiro: Os ingredientes não são assim tão diferentes de um outro tipo de documentário. Tem de haver um enredo, um ou vários protagonistas com que o telespectador se identifique e crie empatia e também emoção, tensão e zonas mais “flat”. Não é diferente de contar uma história. Depois, claro, alguma informação sobre os sujeitos, mas bem doseada. Não esperamos que um documentário de História Natural seja um debitar enciclopédico de conhecimento sobre natureza. Pretendemos ir pela via da exaltação da natureza. Se as pessoas se emocionarem com o que vêem, é mais provável que queiram saber mais e investigar, do que se tivéssemos despejado informação a seco. Além de já lhes termos dado a informação de mão beijada e estas já não se precisarem de envolver mais, não terão sido tocadas pelo lado emocional que, a nosso ver, é a via para ligar as pessoas aos temas.

 

Wilder: A reacção do público aos vossos documentários tem sido a de que estavam à espera?

Luís Quinta: Sim! As reacções têm sido boas, mas claro que gostávamos de chegar mais longe, abranger ainda mais pessoas. Gostávamos que a natureza as inspirasse a serem mais amigas do ambiente e ainda mais orgulhosas do país que herdámos e devemos preservar! Apesar das muitas acções de sensibilização que existem um pouco por todo o lado ainda há muitas más práticas para com os animais e o ambiente! Ou em nome do progresso, ou por crenças antigas e sem fundamento, destrói-se muito do riquíssimo património natural em Portugal.

Ricardo Guerreiro: Por um lado sim. Como estamos satisfeitos com o que temos conseguido fazer, apesar dos meios limitados, não é uma surpresa que as pessoas gostem dos filmes. Por outro, a forma dessa reacção tem sido muito gratificante porque nos permite entender que, de facto, temos conseguido tocar as pessoas. Há quem já nos tenha dito “nunca me tinha arrepiado ao ver a Arrábida” ou “fiquei com os olhos húmidos no final com aquela baleia ao largo da Fonte da Telha”. Para nós foi surpreendente e bem mais gratificante do que se nos tivessem dito “que bem filmado” ou “que bela montagem que fizeram, que histórias bem contadas”. O filme foi só uma ferramenta “invisível” para a comunicação das histórias. E quando as ferramentas não são o principal foco de feedback, é porque prevaleceram as histórias. Sentimos que o nosso trabalho foi bem conseguido.

 

Ricardo Guerreiro no Alvão. Foto: Luís Quinta
Ricardo Guerreiro no Alvão. Foto: Luís Quinta

 

Wilder: O que vos fez decidirem a dedicar-se a esta profissão? Sempre quiseram trabalhar com a natureza?

Luís Quinta: Basicamente queria trabalhar com animais e mundo natural. Quando era jovem pensei que poderia ser biólogo, veterinário, ou algo semelhante, mas na realidade acho que captar imagens na natureza me permitiu a 100% fazer o que desejava. Nenhuma outra profissão me iria dar tanto contacto com os animais, ver tanto, sentir tanto e aprender imenso com o que fiz até hoje.

Ricardo Guerreiro: Sempre quis trabalhar com natureza. Desde miúdo que via filmes da National Geographic e da BBC e queria ser biólogo marinho para trabalhar com orcas. Mais tarde, associado ao meu enorme gosto pelo universo em geral, e por achar mais estimulante a nível académico, acabei por estudar Física. No entanto, por trabalhar esporadicamente em ornitologia, complementando com fotografia de natureza, acabei por passar mais tempo dedicado a esta actividade do que à Física. Penso que acabei por “cair” nesta profissão sem ter feito nenhum esforço consciente. Apenas em 2009 decidi tirar um ano (que acabou por se tornar em dois) para dar tudo e ver se conseguia dar o salto à profissionalização, o que até agora está a funcionar.

 

Wilder: Qual foi o vosso primeiro momento inspirador, aquele em que a natureza vos seduziu de tal forma que hoje dedicam a vida ao mundo natural?

Luís Quinta: Pois! Boa pergunta… Na quinta dos meus avós, na minha infância quando comecei a olhar em redor, vi muitos animais, muito mundo natural. Acho que estive sempre inspirado, depois só tive de escolher o que queria fazer na vida.

Ricardo Guerreiro: Não consigo dizer. Sempre me lembro de estar fascinado com o mundo natural. Mas se tivesse de traçar na história um momento, diria que foi algum dos dias que passei no monte alentejano onde os meus avós viviam e onde eu passava todas as minhas férias em miúdo. Nas noites de Verão era comum fazermos serão na rua do monte, deitados em esteiras. Lembro-me de olhar para aquela imensidão toda do céu e pensar na brutalidade que era a natureza.

 

Wilder: Qual a parte boa desta profissão? E a menos boa?

Luís Quinta: Pensar e viver o mundo natural, sistematicamente, quase todos os dias será o bom. O menos bom, talvez seja a dificuldade de manter tudo “a rolar” sem sobressaltos, vivendo apenas desta profissão. Ser freelancer vivendo a 100% da imagem de natureza é trabalhoso. Não vivemos em fantasias, nem temos outras actividades profissionais. Trabalhar num mercado sem regras é difícil, pois vale tudo…

Ricardo Guerreiro: A parte boa é fazer o que se gosta e conseguir trazer histórias maravilhosas para partilhar com as pessoas. A má é ser patrão de mim mesmo, tesoureiro de mim mesmo, etc. A liberdade traz enormes responsabilidades e os conflitos do Ricardo que sabe que tem de fazer com o Ricardo que hoje não lhe apetece são, com certeza, bem mais difíceis de gerir do que quando se tem um chefe.

 

Wilder: O que mais mudou em vocês desde que começaram a trabalhar?

Luís Quinta: Somos cada vez mais exigentes com o nosso trabalho. Temos a certeza de que Portugal tem um enorme potencial para produzir filmes de História Natural incríveis. E, por isso, queremos fazer mais obras neste domínio. Somos consumidores compulsivos de filmes de História Natural de todo o mundo. Produz-se muito material nesta área e vamos procurando conhecer cada vez mais abordagens, mais filosofias de trabalho. Sentimos que é fundamental circular por festivais e eventos internacionais para “expandir horizontes”, para melhorar o nosso sentido crítico e aprender. Esta área de negócio também tem modas, tendências, mercados, circuitos e grandes evoluções técnicas.

 

Wilder: Como se inspiram as pessoas para a natureza, numa era de excesso de informação e de imagens, mas de cada vez menos experiências no terreno?

Luís Quinta: As pessoas não têm todas de ir para a natureza ver animais. Em inúmeras situações nem será recomendado. Hoje somos muitos mais no planeta do que há 30 anos. Se vir um documentário de um local remoto e até me inspirar, não quer dizer que tenha de lá ir ver com os meus olhos. Se algumas das minhas práticas diárias puderem ajudar a natureza mais perto de mim, óptimo. No estrangeiro e para muitas produtoras como a BBC, a National Geographic, a Disney Nature, muitos filmes de História Natural são vistos como entretenimento. Nem todos terão um vincado carácter educativo e sensibilizador. As pessoas vão ver essas obras como iriam ver um filme de comédia, de ficção, de crime. Querem ter emoções, deslumbramentos e tensão. E claro, aprendem algo e até podem sair da sala mais amigas do ambiente. Como pode acontecer igualmente com um filme de romance. Em Portugal, se um filme de História Natural não apelar muito à conservação, aos riscos para as espécies, ou não debitar inúmeros dados biométricos dos animais retratados, não cumpre a função. Pode até ser visto como uma “aberração”, ou um produto menos conseguido. Falta-nos muito “mundo” no que diz respeito à imagem do mundo natural.

 

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Luís Quinta, 50 anos, fotografa o mundo natural há mais de 25 anos. Na terra e no mar. Já mergulhou por todo o país, desde as Ilhas Selvagens no Arquipélago da Madeira até à Ilha do Corvo nos Açores. Tem mais de mil artigos, reportagens e trabalhos fotográficos publicados na imprensa nacional (por exemplo: na National Geographic Magazine, Visão, Público e Expresso) e no estrangeiro (como na BBC Wildlife Magazine, Terre Sauvage, Geo). Em 2009 integrou o “Dream Team” de fotógrafos de natureza, no maior projecto de fotografia sobre o mundo natural – Wild Wonders of Europe. Em 2013 foi co-autor do filme de História Natural “Arrábida – da serra ao mar” (TV – SIC)  e em 2014 no filme “Almada – entre o rio e o mar” (TV – SIC). É autor de três livros de fotografia submarina e de um sobre a cegonha-branca.

 

Ricardo Guerreiro, 37 anos, fotografa há cerca de 10 anos aquilo de que mais gosta: o mundo rural e o mundo natural. Tem fotografias publicadas nas revistas National Geographic Portugal e Visão e ainda em livros de História Natural. Em 2012 publicou o livro “Almada, Natureza Revelada”. Em 2013 foi co-autor o filme de História Natural “Arrábida – da serra ao mar” (TV – SIC)  e em 2014 no filme “Almada – entre o rio e o mar” (TV – SIC).

 

 

 

 

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.