Fêmea de abutre-preto. Foto: Vulture Conservation Foundation

Portugal está a avaliar introdução de medicamento pecuário que é fatal para os abutres

A Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária recebeu um pedido de autorização para o uso veterinário de diclofenaco em Portugal, uma substância activa usada em medicamentos para gado que é fatal para as aves necrófagas. A Birdlife Europe e organizações ambientalistas portuguesas já lançaram um apelo ao Governo português para não autorizar.

 

“Para a Birdlife Europe e Central Asia é uma grande preocupação que Portugal esteja a considerar aprovar a utilização veterinária de diclofenaco”, alertou esta organização internacional, depois de um encontro internacional em Toledo, Espanha, no fim-de-semana passado para ultimar um plano para a conservação dos abutres na Europa.

Num comunicado conjunto enviado à Wilder, tanto a Birdlife como várias organizações ambientalistas portuguesas informam que “está actualmente a ser avaliado na Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) um pedido de autorização de comercialização de um medicamento veterinário para uso pecuário contendo a substância activa diclofenaco”.

Em seres humanos, o diclofenaco é desde há muito tempo utilizado como anti-inflamatório, sem qualquer efeito grave; mas o mesmo não se passa com as aves. Bem pelo contrário.

“De acordo com a ampla informação científica existente […], o diclofenaco, um anti-inflamatório não esteróide, provoca insuficiência renal aguda nos abutres e também em águias do género Aquila, que culmina na sua morte num curto espaço de tempo. Estas aves morrem de colapso renal até dois dias após a ingestão de tecidos de animais tratados com diclofenaco”, alertam os signatários do comunicado, entre os quais a Birdlife, a Vulture Conservation Foundation e cinco organizações portuguesas: Liga para a Protecção da Natureza (LPN), SPEA (Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves), Quercus, Associação Transumância e Natureza e a Palombar (Associação de Conservação da Natureza e do Património).

Essas cinco associações já avisaram as autoridades portuguesas quanto ao impacto do diclofenaco sobre as aves necrófagas, “tendo apelado ao Governo português para que não permita a autorização e utilização desta substância em território nacional ao nível da pecuária”.

Ainda para mais, afirmam, há em Portugal várias alternativas a este fármaco, pelo que é possível tratar espécies pecuárias de forma totalmente segura para as aves necrófagas.

O diclofenaco foi autorizado para uso veterinário na Índia, em 1993, com resultados devastadores para os muitos milhares de abutres que na altura ocorriam naquele país: em pouco tempo, as populações destas aves reduziram-se em 97%. Resultado? O fármaco foi proibido no subcontinente indiano.

Na verdade, o uso de diclofenaco já causou a quase extinção de três espécies de abutres na Ásia na década dos anos 90. Apesar disso, está autorizado na União Europeia.

Na Europa já há sinais de preocupação. No ano passado, um estudo publicado na revista Journal of Applied Ecology alertou que os medicamentos veterinários que contêm diclofenaco podem causar a morte de mais de 6.000 abutres por ano em Espanha.

 

Abutre-preto e águia-imperial-ibérica 

 

Em Portugal existem hoje populações importantes de aves com hábitos necrófagos e com estatuto de ameaça elevado no que respeita à sua conservação, incluindo abutres e algumas grandes águias:  o abutre-preto, o britango, o grifo, a águia-imperial-ibérica e a águia-real. Quase todas têm populações reduzidas, mas a Península Ibérica alberga as populações mais importantes em toda a Europa.

 

Casal de águias-imperiais-ibéricas. Foto: Projecto LIFE Imperial

 

Joaquim Teodósio, da SPEA, e Eduardo Santos, da LPN, disseram à Wilder que “com populações a recuperar, nalguns casos, esta nova ameaça [do diclofenaco] pode comprometer ou mesmo exterminar algumas destas populações”.

É o caso do abutre-preto que tem apenas 15 casais a nidificar em Portugal. “Uma situação pontual de uma carcaça com diclofenaco, que esteja no campo e sirva de alimento para alguns abutres, pode causar a morte de uma parte significativa da população desta espécie em Portugal.”

Os dois responsáveis da SPEA e da LPN avisam que “mesmo situações pontuais de utilização do fármaco, que fujam ao controlo das entidades, podem ter um efeito dramático”. “Apenas a não autorização do fármaco pelas autoridades nacionais poderá evitar o aumento do risco de exposição a esta substância em Portugal”, sublinham.

A federação Birdlife lembra também que se Portugal autorizar o uso veterinário do diclofenaco isso “poderá ir contra a resolução 11.15 aprovada pela Conferência das Partes da Convenção para a Conservação das Espécies Migradoras de Animais Selvagen em Quito, em 2011 que, inclusivamente, contou com o voto favorável do Governo português”.

 

Ministério da Agricultura confirma que assunto está em avaliação

 

Contactada pela Wilder, uma porta-voz do gabinete do ministro da Agricultura, Luís Capoulas Santos, confirmou que a autorização do uso de diclofenaco está a ser avaliada pela DGAV, acrescentando que não há ainda uma decisão tomada.

“A autorização dos medicamentos tem por base estudos de segurança, eficácia, toxicidade e impacto, e a decisão adoptada tem sempre em conta os pareceres de peritos isentos”, referiu a mesma fonte, acrescentando que “nos estudos efectuados são contempladas as espécias sensíveis e as medidas que possam mitigar o risco associado”.

Ainda de acordo com o gabinete do ministro, “o Sirca (Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos na Exploração) assegura a recolha e destruição dos cadáveres de animais que morrem nas explorações pecuárias”, pelo que estes “não entram em nenhum circuito da cadeia alimentar, havendo garantia de que não ficam acessíveis a animais selvagens”.

Ainda assim, de acordo com os ambientalistas, há coisas que podem correr mal no que respeita ao Sirca – sistema criado em 2009 para ajudar na despistagem da encefalopatia espongiforme bovina, que assegura a recolha e controlo de cerca de 1.000 cadáveres de animais por dia, entre vacas, ovelhas e outros, em todo o país.

“Se um animal morrer e tudo correr bem, o Sirca tem 24 horas para o remover e nesse período existe sempre risco, ou se o produtor não detectar a morte do animal no campo e demorar mais tempo a avisar o Sirca, mais tempo fica também a carcaça disponível”, avisam. Depois de tratado com diclofenaco, a substância fica activa no animal ainda entre 10 a 15 dias. E nesse caso, se alguma coisa correr mal e houver acesso à carcaça, “os abutres morrem”.

“Não acreditamos em medidas de mitigação. A única forma de reduzir essas variáveis é evitar a venda e utilização do produto.”

Em Espanha, um medicamento contendo diclofenaco foi autorizado em 2014. Os primeiros estudos sobre o impacto nas populações de abutres estão agora a ser feitos, pelo que não há dados disponíveis.

“Espanha é o último lugar no mundo com altas densidades de abutres e já não é um lugar seguro para estes animais. O Governo espanhol devia banir o uso veterinário desta droga tão cedo quanto possível, especialmente quando há outras alternativas seguras”, salientou Juan Carlos Atienza, director da Sociedade Espanhola de Ornitologia, após a reunião de Toledo.

 

[divider type=”thin”]Saiba mais.

Leia aqui o comunicado conjunto das várias associações ambientalistas, divulgado esta quinta-feira, quanto à eventual introdução do uso de diclofenaco em Portugal.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.