Uma expedição à procura da vida selvagem em Lisboa

Os piscos-de-peito-ruivo e os melros voavam entre as árvores cobertas de musgo do Jardim Botânico, durante a nossa expedição de Inverno guiada pelas autoras do livro “Lá Fora – Guia para descobrir a Natureza”. A tarde estava cinzenta e caía uma chuva miudinha, mas Inês Teixeira do Rosário e Maria Dias não recusaram o nosso pedido para nos ajudarem a procurar vida selvagem naquele jardim do Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUNHNAC), no coração de Lisboa. Quisemos saber se é fácil, ou não, ver vida selvagem entusiasmante sem sair das cidades.

A riqueza natural do país não merece dúvida. Em Portugal existem 3995 espécies de plantas, 66 de libélulas, 104 de mamíferos, 35 de répteis, 43 de peixes e ainda 235 espécies de aves a fazer ninhos, 17 de rãs, sapos, salamandras e tritões,135 espécies de borboletas diurnas e 2500 nocturnas. Mas e nas cidades?

Symphoricarpos orbiculatus Moench, arbusto de origem norte-americana. Fotografia: Joana Bourgard

 

As duas biólogas pareceram-nos as naturalistas indicadas para a missão. “Mesmo que moremos numa grande cidade, existe sempre natureza lá fora”, escreveram no livro que publicaram em Março de 2014 para “dar um empurrão que nos faça sair de casa”.
A expedição começou com histórias sobre bolotas e gaios, à medida que nos aproximámos de um imponente dragoeiro. Esta árvore antiga, originária da região da Macaronésia (Canárias, Açores e Madeira), está hoje “bastante ameaçada em Portugal e praticamente extinta no arquipélago madeirense”, disse Maria Dias. O nome do dragoeiro foi inspirado pela cor vermelha da seiva desta árvore que, nos tempos antigos, costumava ser confundida com sangue de dragões, acrescentou esta especialista em aves marinhas e aquáticas, a trabalhar em Portugal e Inglaterra.

Dragoeiro da Macaronésia. Fotografia: Joana Bourgard

 

Uns passos à frente parámos, por sugestão de uma Inês Teixeira do Rosário entusiasmada. A bióloga, que começou por estudar répteis e anfíbios, está envolvida actualmente numa investigação relacionada com os montados. O entusiasmo deve-se às cicas, plantas de folhas compridas que parecem pequenas palmeiras, ainda que nem sequer sejam da família. São Cicas circinalis, originárias do Sul da Índia e membros das cicadófitas, indica-nos o letreiro que ali está colocado. “São espectaculares! São plantas do tempo dos dinossauros, muito, muito antigas”, explicou Inês.

Não fosse essa chamada de atenção, teríamos seguido em frente – e sem olhar duas vezes para as cicas – em direcção aos troncos de árvores pintados de verde pelos líquenes e pelo musgo, que denunciavam o Inverno. E foi graças a um trabalho de detective, “como fazem os biólogos de campo”, brincou Inês, que reparámos numas inocentes folhinhas redondas, muito verdes, que pareciam nascer dos troncos das palmeiras no caminho. Ouvimos as explicações e anotámos no caderno de campo: “Umbigos de Vénus – plantas que vivem em cima de outras plantas e de muros”.

Fotografia: Joana Bourgard

 

Se espreitarmos as páginas do livro “Lá Fora”, entre muitas outras coisas, ficamos a saber que nas florestas portuguesas vivem mais de 60 espécies de árvores, sem contar com tantas outras exóticas que também habitam em jardins e noutros espaços verdes. E lemos também que para muitas aves, as árvores são casas maravilhosas.

A expedição mostrou-nos tesouros do reino vegetal, mas lá por cima muitos pares de asas esvoaçavam a chamar a nossa atenção – embora com a noite a chegar, fosse difícil perceber que espécies se escondiam por cima das nossas cabeças. No Inverno é especialmente interessante procurar os bandos de estorninhos, aves pretas malhadas com pequenas manchas claras, que se agrupam em bandos de dezenas ou mesmo centenas de indivíduos, em muitos locais das cidades. E Lisboa não é excepção. “No Cais do Sodré, no Inverno, é muito engraçado ver os bandos de estorninhos”, disse a sorrir Maria Dias.

Mas os estorninhos não são as únicas aves que gostam de se passear pelas cidades durante o Inverno. Ali perto ouviu-se o grito de alarme de um pisco-de-peito-ruivo que se deve ter assustado com a expedição. Melros negros de bico laranja e os exóticos e estridentes periquitos-de-colar (da família dos papagaios) também fazem questão de dar nas vistas, ambos ao longo das quatro estações. E se andarmos de olhos bem abertos, quem sabe até conseguimos vislumbrar um gaio de pontas de asas azuis? Maria acredita que até é fácil: “Andam sempre por aqui, os gaios são residentes em Lisboa.”

Encephalartos são, em termos evolutivos, das plantas gimnospérmicas existentes mais primitivas. Fotografia: Joana Bourgard

 

Portugal é um dos países mais ricos da Europa no que respeita à diversidade de aves que se podem observar, lemos também no livro “Lá Fora”. Das cerca de 10.000 espécies de aves que existem no mundo, cerca de 400 podem ser vistas em território português (ainda que apenas 235 sejam nidificantes). Umas durante todo o ano, algumas mais habituais no Inverno ou noutras estações, mas todas fascinantes com um par de binóculos e um guia de aves nas mãos.

As gotas de chuva que começaram a cair cada vez com mais força obrigaram-nos a apressar o passeio. Mas antes, ainda tivemos tempo para olhar o pequeno lago central que ornamenta uma das áreas do jardim (a chamada zona da “classe”, dedicada à divulgação do conhecimento botânico) e espreitar os peixinhos minúsculos que andam por ali.

Procurámos ainda sapos ou rãs. De acordo com as duas autoras, em Portugal existem apenas dois grupos de anfíbios, que são os anuros e os urodelos. Os primeiros não têm cauda e as patas de trás são maiores do que as da frente, como os sapos, as rãs e as relas. Quanto aos urodelos, têm cauda e as patas mais ou menos do mesmo tamanho, e podem ser por exemplo salamandras ou tritões.

 

Fotografia: Joana Bourgard
Fotografia: Joana Bourgard

 

Mas naquela tarde cinzenta nem vê-los. É na época das primeiras chuvas, quando o tempo já não é tão seco, “que os anfíbios começam a sair” (desde que não esteja ainda muito frio). Inês Teixeira do Rosário contou que é relativamente comum encontrarmos algumas espécies em charcos, mesmo dentro das cidades. “Uma rã aguenta-se muito bem, desde que tenha água”, afiançou.

Contudo, com a chuva a apertar e a noite a chegar, despedimo-nos das nossas guias. Se tivéssemos galochas calçadas ainda podíamos chapinhar nas poças de água, como Inês contou que os filhos adoram fazer quando chove (porque “não há melhor coisa do que a água para uma criança”). Ficou a vontade de regressar a este espaço verde num outro passeio, de fazermos outros caminhos com as mesmas duas guias, e de conhecermos outros recantos desta e de outras cidades, onde o Inverno guarda ainda surpresas para quem sabe como procurar.

Maria Ana Peixe Dias, Bernardo Carvalho e Inês Teixeira do Rosário. Foto: Planeta Tangerina
Maria Ana Peixe Dias, Bernardo Carvalho e Inês Teixeira do Rosário. Foto: Planeta Tangerina

 

[divider type=”thin”]Quer saber quais são os lugares favoritos das autoras para passear na natureza? Então leia aqui a resposta a esta e a outras perguntas que lhes fizemos.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.