Vamos contar aves costeiras invernantes na Costa Vicentina?

Nuno Barros leva-nos numa manhã de Janeiro a contar aves costeiras invernantes num dos troços mais remotos da Costa Vicentina, no âmbito do Projecto Arenaria.

 

 

O dia amanheceu frio e seco e o ar limpo de Janeiro convida a sair de casa. Hoje vou para a costa escarpada e mais desconhecida de Vila do Bispo fazer uma quadrícula do Projecto Arenaria – um projecto de voluntariado que este ano coordeno e que ambiciona realizar um censo nacional de aves costeiras invernantes na costa não-estuarina portuguesa.

Na véspera estudei os mapas dos percursos e percebi que o troço Sul da quadrícula era composto por praias sem acesso óbvio, utilizadas quase exclusivamente pelos profissionais da apanha do perceve e alguns pescadores mais afoitos – Mouranitos, Mirouço e Pena Furada. Três praias aqui tão perto mas fora do mapa, onde nunca tinha estado.

Saio do alcatrão e meto pelas estradas de terra que cruzam o Parque Natural. Um sol tímido faz brilhar a humidade da manhã e à minha volta esvoaçam alvéolas-brancas (Motacilla alba), petinhas-dos-prados (Anthus pratensis), trigueirões (Miliaria calandra), chamarizes (Serinus serinus), lavercas (Alauda arvensis) e cotovias-escuras (Galerida teklae).

 

Cotovia-escura
Cotovia-escura

 

Aqui no planalto costeiro a paisagem é composta por extensos e abaulados vales de um solo xistoso rude, cobertos maioritariamente de esteva (Cistus ladanifer). A omnipresente serra de Monchique ao fundo, na bruma da manhã. Uma paisagem que tem tanto de desolado como de sereno e rico, que nos apela tanto ao refúgio como ao abandono.

 

Vales costeiros com matos de esteva, PNSACV - Vila do Bispo
Vales costeiros com matos de esteva, PNSACV – Vila do Bispo

 

Pelo caminho antes de chegar à costa que nunca vi, uma tordoveia (Turdus viscivorus) num fio de telefone (sítio estranho para uma Tordoveia) e uma águia-d’asa-redonda (Buteo buteo) a preguiçar no topo de um pinheiro esculpido pelo vento Norte. Por fim chego à falésia por cima da Praia dos Mouranitos, para começar o censo.

Neste meio de nenhures há bastantes carros, todos eles de mariscadores. Consigo vê-los lá em baixo, duas equipas de três, munidos de cordas e arrilhadas. Não tarda a chegar mais um, já vestido de neoprene, que me saúda com o que me pareceu ser uma doçura inata reprimida pelo mar. A praia é lindíssima, encaixada numa imponente falésia arredondada, por esta altura pintada de um verde élfico assim acinzentado. Mas de aves costeiras, pouco. Duas gaivotas-de-patas amarelas (Larus michahellis) e um maçarico-galego (Numenius phaeopus).

 

Mariscador no cimo da Praia dos Mouranitos
Mariscador no cimo da Praia dos Mouranitos

 

Literalmente por montes e vales vou para o ponto seguinte, o mais alto daquele troço, a Sul da Praia do Mirouço. No meio das estevas reparo numa lagoa temporária, habitat prioritário por estas bandas, mas normalmente pobre para as aves. Uma garça-real (Ardea cinerea) solitária pousa tolhida na margem. Pelo caminho ouvem-se piscos-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula), fuínhas-dos-juncos (Cisticola juncidis) e felosas-do-mato (Sylvia undata) e, ocasionalmente, um tordo (Turdus philomelus). Quando chego ao destino encontro um melro-azul (Monticola solitarius) em cima de um marco geodésico, uma espécie de cartão-de-visita destas escarpas vicentinas.

Este é um local assombroso. O solo está coberto de líquenes amarelos e Escudinha (Lobularia marítima). Pequenos bandos de pintassilgos (Carduelis canabinna) e pintarroxos (Carduelis carduelis) cruzam o cinzento da pedra. Cheira a Inverno. É um miradouro natural magnífico e tenho dificuldade em não prolongar a minha breve estadia no local. Afinal estou aqui para contar aves lá em baixo. Mais meia-dúzia de gaivotas e duas Rolas-do-mar (Arenaria interpres).

 

Tapete de Escudinha, alto da falésia do Mirouço
Tapete de Escudinha, alto da falésia do Mirouço

 

A Praia de Pena Furada é uma curta enseada em caracol, encafuada num troço de costa nua. Na zona entre-marés, mais três homens e um corvo-marinho-de-crista (Phalacrocorax aristotelis), um residente regular mas escasso, estão cada qual na sua pescaria. O canto de outro melro-azul entoa nas escarpas e o sol começa a aquecer e a banhar a rebentação. Oito rolas-do-mar alimentam-se nas pedras escuras batidas pelas ondas.

 

Praia da Pena Furada
Praia da Pena Furada

 

A Praia do Amado é o primeiro lugar “visitável” da quadrícula e um cenário bastante diferente. O caminho para a praia tem outro tipo de vegetação arbustiva, menos denso e mais doce, pontuado de zimbro (Juniperus turbinata) e aroeira (Pistacia lentiscus), onde será previsível encontrar uma avifauna mais florestal. Ouvem-se carriças (Troglodytes troglodytes), toutinegras-de-cabeça-preta (Sylvia atricapila) e tentilhões (Fringilla coelebs).

 

A caminho da Praia do Amado
A caminho da Praia do Amado

 

A praia parece adormecida, como o café e escolas de surf obviamente encerrados, longe do burburinho do Verão. Mais uma mão-cheia de gaivotas para a ficha de registo.

 

Praia do Amado – Norte
Praia do Amado – Norte

 

Inicio agora o percurso do Pontal da Carrapateira, território de matos arbustivos agrestes, lapiás de cortar solas de sapatos e batalhões de pescadores à linha. O objectivo é bater a linha de costa e contar gaivotas e corvos-marinhos na meia-dúzia de ilhéus rochosos que por ali há. O primeiro ponto é a sempre pitoresca Ponta do Castelo, com as suas toscas ruínas de um antigo povoamento islâmico do séc. XII, onde alguns pescadores assentam arraiais sazonalmente. Que rijeza lhes deve ir nos ossos para escolherem este lugar áspero.

De ponta em ponta, conto no total sete corvos-marinhos-de-crista (uma agradável surpresa) e quatro corvos-marinhos-de-faces-brancas (Phalacrocorax carbo) – espécie invernante – e mais umas 20 gaivotas-de-patas-amarelas. Bandos de gralhas-de-nuca-cinzenta (Corvus monedula) e de estorninhos-pretos (Sturnus unicolor) fazem piscinas entre os ilhéus e a costa.

 

Um dos ilhéus da península da Carrapateira, que acolhia corvos-marinhos-de crista
Um dos ilhéus da península da Carrapateira, que acolhia corvos-marinhos-de crista

 

A quadrícula terminou. Reparo pelo telescópio em dois corvos-marinhos-de-crista perto um do outro, um deles já com a crista nupcial bem proeminente, a escorraçar algumas gralhas que pousavam entre os dois. Deveria encontrar-se já em rituais de acasalamento – esta espécie é bastante assíncrone na época de reprodução.

Ao fundo o casario da vila da Carrapateira brilha atrás da esteva, um cravo-das-areias (Armeria pungens) está precocemente em flor e um rabirruivo-preto (Phoenicurus ochrurus) entoa o seu trinar pela subida da maré.

 

Cravo-das-areias em flor
Cravo-das-areias em flor