Pintassilgo. Foto: Dimitrisvetsikas1969/Pixabay

A alegria das aves

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Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

“Há trinta anos havia pássaros. Vinha Março, Abril, e o cuco solfejava incansável nas ramagens. Mais adiante, era o chinchalarraiz (…). Por Agosto, ouvia-se a rola e a boubela; por Setembro, as aves de arribação, que se iam embora e deixavam cá ficar o pisco, o canto mais melancólico de todos os que, na hora da criação, foram distribuídos às criaturas dos ares”. 

A. M. Pires Cabral, O Diabo Veio ao Enterro

Num tempo de rutura ecológica, ouvir o canto das aves e ler sobre estas pode ser um modo de romper com a clausura do pensamento antropocêntrico e (re)aprender a cultivar a empatia para com os outros seres.

Vivemos um tempo de perturbação: desaparecem espécies, secam rios, poluem-se águas e ar, aparecem vírus — uma sequência de acontecimentos em cadeia que contribuem para o empobrecimento do nosso planeta.

Cotovia-comum. Foto: El Golli Mohamed/WikiCommons

Por isso, aqui e agora, é importante falar sobre a alegria da biodiversidade, nomeadamente da existência das aves, do “esplendor da plumagem, da beleza do canto, da destreza do voo”. É o que faz A. M. Pires Cabral em diferentes obras: poesia, contos, romances e crónicas. No excerto de O Diabo Veio ao Enterro, em epígrafe, repete-se o prazer da enumeração das aves, tal como são conhecidas na região do Nordeste transmontano: dentirrostros abelhudos, pincha-no-crivo, tralhões, pardinhas, tanjasnos e piscos. 

Veja-se como o autor, ao nomear as diferentes espécies, as traz de volta ao leitor. Com sorte, este quererá saber como são, onde vivem, em que estação e em que parte do dia — e se observadas com atenção — tornam o momento mais vívido, mais palpitante. E a certeza de que se ainda não desapareceram, são um tesouro a preservar. Sim, porque o canto de muitas das espécies é só ausência: “Hoje, a química dos pesticidas gera frutos e colheitas mais sãos, gera; mas, com a outra mão, desdobrou sobre os campos o sudário do silêncio.” Irmão de pensamento de Rachel Carson, também para o autor transmontano a ideia de uma primavera silenciosa é uma hipótese infeliz. 

Pintassilgo. Foto: Dimitrisvetsikas1969/Pixabay

Ou de um outono sem ver partir os “pássaros”, palavra que, como explica o autor em Por Esta Terra Adentro, tinha em Trás-os-Montes um sentido concreto: “aquelas aves de arribação, pequenos dentirrostros estouvados, que apareciam sobre o fim do Verão para a safra das amoras e da mosquitada, e que, por volta do dia de S. Mateus, que cai a 21 de setembro, pressentindo e temendo o frio que aí vinha, batiam as asas e voltavam às terras de origem.” Por isso, insiste, há vinte, trinta anos, numa manhã de agosto, os caminhos, hortas e lameiros “eram uma aleluia de trinados, chilreios, grasnidos, assobios.” E “aos residentes de toda a roda do ano (milharengos, pachacins, tentilhões, pintassilgos, pintarroxos, verdilhões, chinchalarraízes), juntavam-se por essa altura os tais ditos pássaros: tralhões, pardinhas, mosqueiros, tanjasnos, piscos, todos esses tolos e buliçosos dentirrostros”. 

“Assim como gosto de aves, gosto de escrever sobre elas.” E uma das que tem lugar cativo no seu bestiário é a cotovia: “Em finais de tarde de Verão… gostamos por vezes de subir a um outeirinho sobranceiro a Grijó para disfrutar melhor as cores do poente. E decerto que são belas e sempre imprevistas essas cores, consoante as nuvens que há no céu. Mas tudo tem muito mais sainete quando alguma cotovia, por essa hora, sobe altíssimo e de lá das alturas solta um canto ao mesmo tempo jubiloso e melancólico (…).” (Por Esta Terra Adentro)

Verdilhão. Foto: Martin Kunz/WikiCommons

A “rarefação do mundo alado”, que refere A. M. Pires Cabral, merece a nossa atenção, no sentido de ativamente impedirmos que a Terra deixe de ser habitável. Neste quase outono, possa o leitor sentir que as aves do poeta nos enchem “a alma com o seu estrépito / e intensa vitalidade” (Arado).


Isabel Fernandes Alves pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”

Esta é a nona crónica da série “Escrita com Asas”.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.