Andorinha-das-chaminés (Hirundo rustica). Foto: Standbild-Fotografie/WikiCommons

À espera das andorinhas

Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

 

“Portugal, nos primeiros dias de primavera, é coberto de asas e o céu azul chilreia. Toda a gente espera as andorinhas. As rústicas escolhem os campos; e as outras procuram as vilas, as cidades, a convivência dos homens e os velhos beirais a cair para uma banda. Conhecem as pessoas, entram pelas janelas com familiaridade, e na antiga casa da aldeia até dentro da sala constroem o ninho. […]

Conhecem Portugal a palmos: as eiras do Minho, com alguns punhados de milho, e as vastas eiras do “monte” alentejano; os descampados do sul com alguns pinheiros mansos isolados, e o homem do Algarve que desbrava a terra a fogo e pesca o atum na costa. São elas que põem Portugal em comunicação com o céu, e que fazem a primavera nos primeiros dias de Março. Não há verdadeira primavera nos países onde não há andorinhas.”

Portugal Pequenino (1930), de Maria Angelina e Raul Brandão

 

Andorinha-das-chaminés (Hirundo rustica). Foto: Standbild-Fotografie/WikiCommons

 

Em Portugal Pequenino, dois amigos “de palmo e meio” ganham asas e sobrevoam territórios, paisagens e gentes, à descoberta de Portugal: de Norte a Sul; da serra à costa. A obra, que se desdobra em impressões de viagem, foi escrita a quatro mãos pelo casal Raul Brandão e Maria Angelina, “para os filhos dos outros”, como se lê na dedicatória.

Na capa da 1ª edição, o desenho de Carlos Carneiro — um casal atento de andorinhas-das-chaminés (Hirundo rustica), debruçadas sobre um ninho de lama, repleto de pequeninos bicos esfomeados — deixa antever que estas aves, entre as muitas referidas na obra, merecem uma atenção especial ao longo das várias paisagens descritas. Aliás, os autores dedicam-lhes mesmo um capítulo (“As andorinhas”), que abre, chilreante e primaveril, com o excerto acima citado.

Desmentindo o provérbio latino — una hirundo non facit ver—, Maria Angelina e Raul Brandão, profundo observador da Natureza e do húmus humano, intensificam a imagem simbólica da andorinha: mais do que um indício, a andorinha é o início inequívoco e, por si só, criador de Primavera. Não é, pois, o calendário, nem o equinócio, nem a meteorologia – são as andorinhas “que fazem a primavera nos primeiros dias de Março”. Neste mês, ocorria então o pico das migrações provenientes do Sul e o fenómeno punha “Portugal em comunicação com o céu”, de olhos e corações ao alto, a assistir à chegada das espécies que regressavam da sua invernada em África. A migração das andorinhas, em bando, com a sua triste partida e alegre regresso, é descrita com pormenor nas páginas seguintes: “A força que as trouxe, é a força que as impele.”

Das cinco espécies de andorinhas que ocorrem em Portugal, o texto alude às duas mais comuns em zonas humanizadas, atribuindo-lhes o respectivo habitat. Referindo-se à andorinha-das-chaminés, diz o excerto que “as rústicas escolhem os campos”; e, de facto, estas podem ser encontradas principalmente em meio rural. “As outras procuram as vilas, as cidades, a convivência dos homens e os velhos beirais” – são as andorinhas-dos-beirais (Delichon urbicum), que observamos em zonas urbanas, muito abundantes nas bordas dos telhados.

Amplamente distribuídas por todo o país, “chiando de alegria e […] descrevendo círculos”, estas andorinhas “conhecem Portugal a palmos” e também as especificidades da paisagem (humana e natural) de cada território onde nidificam e procriam. Desde “as eiras do Minho” aos “descampados do sul”. Sociáveis, “conhecem as pessoas” e até o “homem do Algarve”, que desbrava a vida entre a terra e a costa. Indissociáveis das paisagens e da cultura portuguesa — que moldam de lama e de esperança —, da serra à costa, do Minho ao Algarve,toda a gente espera as andorinhas”.

 

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Joana Portela pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. Esta é a terceira crónica da série “Escrita com Asas”.