Foto: Paulo Catry
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Crónicas naturais: Asas da noite africana

Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, oferece-nos vislumbres da natureza que reveste os seus dias. Nesta crónica, mergulhamos na natureza da Guiné-Bissau e da capital, Bissau, uma cidade de encontros improváveis e desfechos inesperados.

Bissau, dezembro 2021

Splash, um morcego gigantesco mergulha parte do corpo na água em pleno voo (parece-me que é banho e bebida ao mesmo tempo) para logo desaparecer na escuridão da noite.

Volta e meia, a intervalos de poucos anos, vamos tendo “reuniões de projetos que gostaríamos que travassem a perda de biodiversidade tropical” no hotel mais charmoso de Bissau, o 24 de Setembro (ainda é conhecido assim, apesar de ir mudando regularmente de nome). Além das reuniões, o que interessa aqui são os jardins, simples, mas ricos. Gosto de sentar-me à beira da piscina ao princípio da noite, depois do stress de mais um dia de “missão impossível”.

O sossego é imenso, mesmo se estamos numa capital de um país jovem e em crescimento: ninguém quer saber deste recanto depois do escurecer. Que bem que sabem as raposas-voadoras, pequenas ou grandes, que vêm beber em voo rasante aos meus pés. No tempo das mangas também comem por aqui, poisadas mesmo à nossa vista.

As raposas voadoras são muito abundantes em Bissau e por toda a Guiné. Foto: Konrad Bidziński/Wiki Commons

Canta agora um mocho-de-orelhas-africano Otus senegalensis, uma espécie que nunca vi e que, francamente, já nem desejo muito ver. Uma ave pode ser importante na vida de um ornitólogo sem ter sido vislumbrada por um segundo que fosse. Tantas noites de Guiné, de Bissau às ilhas mais remotas dos Bijagós, ou ao interior profundo do Boé, ao som destes mochinhos minúsculos. Um canto bonito, calmante com a frescura agradável da noite africana e com grilos em pano de fundo. Mochinhos sempre escondidos, o mistério perdura. 

Mocho-de-faces-brancas Ptilopsis leucotis. Foto: belgianchocolate/Wiki Commons

Esta noite mesmo, no centro de Bissau, vi um casal de bufos-malhados-africanos Bubo africanus (de olhos amarelos) e um mocho-de-faces-brancas Ptilopsis leucotis (olhos quase vermelhos), isto é que é mesmo vida noturna. Vi também uma coruja-das-torres Tyto alba (olhos negros) – tão conhecida das nossas paragens, é uma espécie incomparavelmente mais abundante em Bissau do que nas cidades e vilas portuguesas. Nestes mesmos jardins, observei também há uns anos o meu primeiro mocho-anão-africano Glaucidium perlatum (olhos amarelos outra vez), birdwatching de hotel, pouco romântico, mas eficaz.

Noutras noites mais remotas encontrámos corujas-pesqueiras Scotopelia peli ao longo do Fefine. O Fefine é o derradeiro rio selvagem da Guiné-Bissau (o “selvagem” também já escasseia na África Ocidental), onde nadam hipopótamos e vêm beber os últimos leões da região, bordejado de árvores pululantes de chimpanzés, de colobos, de babuínos e de outros primatas agora raros por estas paragens. Esta é uma coruja que vive de pescar peixes magníficos e desconhecidos nos recantos mais escuros de África, na verdade um enorme corujão que me preenche os sonhos de descobertas aquáticas (nessa expedição apanhámos um peixe-gato-elétrico Malapterurus sp, localmente conhecido por pis-choque, por exemplo). 

Coruja-pesqueira Scotopelia peli fotografada no rio Fefine, Guiné-Bissau. Foto Paulo Catry

Às vezes os voos vindos de Lisboa são já tarde à noite. Lembro-me de chegar a Bissau com uma colega e de não termos ninguém à espera, ao contrário do combinado. Rapidamente o aeroporto se esvaziou, ficou um bando de taxistas sem clientes e de vendedores desiludidos que rapidamente nos rodearam com perguntas insistentes. Comunicávamos em crioulo. Ninguém aparecia para nos vir buscar e por uns segundos sentimos um cerco ameaçador que se apertava… até que percebemos o que já tínhamos obrigação de saber: os taxistas queriam ajudar e logo começaram a telefonar para contactos de quem podia tirar-nos dali. Mas tirar-nos dali sem precisarmos sequer de um táxi! No final, depois de o nosso transporte aparecer, ainda nos estenderam um saco que ia ficando esquecido. 

A Guiné-Bissau, geralmente noticiada pelas piores razões, é na verdade segura, repleta de belíssimas asas protetoras, asas escuras de raposas-voadoras, de noitibós, de gorazes, de falenas, de mochos e corujas… e sobretudo de asas noturnas de improváveis anjos da guarda, sempre prontos a sorrirem e a ampararem. Bem hajam!


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.