Navegando na floresta alagada. Foto: Paulo Catry.
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Crónicas naturais: em busca do marsupilami

“Navegámos e caminhámos durante dias sem nunca encontrar sinais humanos, nem sequer um bocadinho de plástico, fosse em terra ou flutuando no rio”, conta-nos o biólogo Paulo Catry, numa expedição inesquecível ao coração do grande oceano verde da Amazónia.

Colômbia, Março 2023

O pequeno Cessna ronrona consistentemente, sem sobressaltos nem pressas, sobre a floresta que, em todas as direções, se estende até ao horizonte. O tapete verde desfila lento sob os nossos olhos, contínuo mas irregular, diverso quando olhado com atenção. Floresta alta de terra firme, florestas mais baixas nos solos de areias brancas, matas ripícolas, manchas dominadas por palmeiras onde se adivinham zonas húmidas. Uma imensa manta de retalhos perfeitamente justapostos, sem chão aberto visível. Por vezes avistam-se pontos vermelhos, grandes araras que voam aos pares acima das copas. A dado momento, na paisagem plana erguem-se colinas e tepuis altos, montanhas de paredes verticais, alguns pequenos, outros de grande extensão. Por muito tempo e quilómetros, não se vislumbra qualquer sinal de mão humana na imensidão amazónica.

Tepuis erguem-se da floresta amazónica, no leste da Colômbia. Foto Paulo Catry

Além do piloto, somos só dois passageiros mais bagagem na avioneta de 4 lugares. Será necessária uma segunda aeronave para trazer um terceiro elemento e o resto da carga para esta pequena expedição de objetivo simples: chegar a um dos recantos mais remotos da região. Perseguir a miragem do distante, intocado, selvagem. Porque o devaneio precisa de palavras e imagens que o justifiquem, digo que vamos à procura do marsupilami*.

Finalmente, após uma hora de voo desde Mitú, pequena cidade já de si bem remota do leste da Colômbia (onde só se chega por navegação fluvial ou de avião), avistam-se rios tortuosos mais amplos e algumas pequenas clareiras agrícolas na floresta. Descemos para aterrar numa estreita linha irregular de terra vermelha no meio do verde fumegante de humidade tropical. Em espanhol, chamam a esta pequena comunidade Buenos Aires. Zero graus de latitude, sol a pino. 

Ao longo destes rios, o Apaporis e o seu afluente, o Cananari, existem algumas pequenas comunidades de índios, nomeadamente das etnias Kawiyari, Pachacuari e Taibano. Índios que desde há séculos aqui habitam, que foram nómadas mas nas últimas décadas se sedentarizaram e que recebem algum apoio do governo colombiano. Não há por aqui, como há ao longo do Amazonas e em tantas outras áreas, colonos (caboclos ou outros) vindos das montanhas ou do litoral.

Crianças indígenas na última aldeia visitada, antes de nos embrenharmos na floresta profunda. Foto: Paulo Catry

O grupo expedicionário, composto por mim, por um americano e por um holandês radicado na Colômbia, é reforçado por 6 índios das comunidades locais. Vamos subir o Caño Paca, um pequeno afluente do Cananari só frequentado ocasionalmente por algumas expedições de pesca de gentes daqui. Tirando o seu troço inferior, nem os guias escolhidos a dedo conhecem a totalidade do curso do rio. Há apenas um deles que subiu o Caño até longe uma vez, mas que, iremos comprová-lo mais tarde, já nem se lembra do caminho.

O rio estreita abruptamente e muda de cor quando passamos do Apaporis para o Cananari. Estreita outra vez, e muito, quando entramos no Caño Paca, mas de início ainda é facilmente navegável. Curvas e contracurvas, trajeto tipicamente contorcido das várzeas amplas de sedimentos móveis só provisoriamente agarrados pela vegetação. Ao fim do primeiro dia de subida do Caño Paca, aqui e ali as copas das árvores começam a esconder o céu sobre as nossas cabeças. E começam a aparecer árvores caídas que se atravessam de margem a margem, cortando a estrada fluvial até aqui aberta e aprazível.

Fazem agora sentido os dois enormes machados que trouxemos desde Mitú. Apoiados pelas catanas, desbravam a vegetação que nos tolhe os movimentos. Em breve, passamos mais tempo a cortar árvores e ramos baixos do que propriamente a navegar. As copas semi-submersas envolvem-nos completamente. Aos golpes de catana, caem inúmeros invertebrados na piroga e sobre nós. 

As primeiras árvores atravessadas no caminho do Caño Paca exigem a intervenção dos machados. Foto: Paulo Catry

É uma verdadeira chuva, até tarântulas vêm parar a bordo. Esta viagem não é para quem sofra de alergias a picadas de insetos ou de aracnofobia! O mais interessante são os gafanhotos e grilos de formas e cores exóticas que nos aterram em cima. As formigas são bem incómodas, havemos de acabar a viagem completamente marcados pelas suas fortes picadas. As vespas são as únicas que geram gritos de alarme entre os índios e algumas retiradas a grande velocidade. De resto, é uma excelente forma de observar a incrível biodiversidade.

Ao início da tarde do terceiro dia de viagem de piroga começa a chover com alguma intensidade. Navegamos durante horas sob a chuva na floresta silenciosa. Os impermeáveis revelam-se incompetentes, a água penetra por todo o lado, a pouco e pouco ficamos cheios de frio, só a bagagem sob uma lona plástica resistente aguenta.

Encostamos na margem de mata virgem. Em minutos, as catanas manejadas com uma eficiência difícil de acreditar limpam uma área confortável, cortam-se árvores finas e montam-se abrigos cobertos de lonas plásticas. Não há cabos nem cordas, só lianas. Suspendem-se macas e acende-se fogo na floresta gotejante. Cozem-se piranhas e bagres capturados pela manhã, acompanhados de mandioca (aqui conhecida por yuca) e arroz. Sabe-me bem o caldo quente e muito picante.

Cozinha improvisada. Foto: Paulo Catry

Depois do jantar, damo-nos conta de que a água está a subir, nada de surpreendente, com o que tem chovido. Entretemo-nos de lanternas acesas, observando tarântulas, escorpiões, pseudoescorpiões, uma cobra tão fina e comprida que parece correr o risco de se quebrar em dois bocados, tudo dentro dos limites do pequeno acampamento temporário. 

Fauna noturna no acampamento. Foto: Paulo Catry
Esta expedição não é para quem sofra de aracnofobia. Foto: Paulo Catry

Às tantas o Frank declara que perante a subida das águas vai dormir na piroga. É um ataque de pânico injustificado, ou pelo menos prematuro. Na verdade, é preciso descansar do longo dia. Penduramos os sacos e deitamo-nos, enquanto a água cresce, alastra, invade o acampamento e corre sob as nossas macas. Ouve-se o cair de uma árvore na noite escura e inquieta. No ponto mais elevado da nossa microgeografia, as brasa da fogueira que cozinharam o jantar extinguem-se com um derradeiro suspiro: pffffff. Toda a floresta à nossa volta está agora alagada. Alagada e, tirando uns vagos pirilampos, completamente negra. Resta esperar que o rio não continue a subir na escuridão.

Na madrugada seguinte, a água desceu um pouco, mas quando embarcamos fazemos quilómetros de navegação sem encontrar um palmo de terra firme. Foi preciso um dia de viagem até conseguir um local seco para montar novo acampamento. Parecem felizes os caimões que encontramos pelo caminho.

Ao abrir-se caminho na vegetação densa, caem todo o tipo de pequenos animais na piroga. Foto: Paulo Catry.

Os macacos-lanudos são dos maiores primatas da Amazónia (difícil dizer qual é realmente o maior de todos). Existem 2 espécies, ambas muito perseguidas por caçadores. Aqui ocorre o macaco-lanudo-comum Lagothrix lagotricha. Em quase todas as partes vão rareando, exceto nas áreas mais selvagens, como no Caño Paca, onde são manifestamente abundantes. Encontramos vários indivíduos que não fogem quando nos encontram, preferindo antes fazer exibições de força e agilidade, como se estivessem a provocar-nos. Macacadas.

Macaco-lanudo. Foto: Paulo Catry

Tal como no interior profundo do nosso país, onde por todo o lado há trilhos de javalis, aqui cada bocado de floresta tem trilhos óbvios de tapires invisíveis. Os animais escondem-se, mas uma mulher diz que viu, na madrugada da nossa partida, um jaguar a atravessar o rio às portas da comunidade… Os nossos guias índios dizem que se veem, mas só muito raramente, estes bichos a quem têm claramente um enorme respeito. 

Navegámos e caminhámos durante dias sem nunca encontrar sinais humanos, nem sequer um bocadinho de plástico, fosse em terra ou flutuando no rio. Mesmo nos vastíssimos oceanos marinhos, já não parece ser possível uma experiência assim. A todo o lado chega o plástico e o lixo, mas não aqui, não ao coração do grande oceano verde.

Navegando na floresta alagada. Foto: Paulo Catry.

No final da expedição, depois do regresso à última aldeia de onde partimos, subo a um tepui com dois dos nossos guias e dormimos lá quase no topo, numa gruta aberta, desfrutando de vistas redentoras. Amazónia pura. Não há estradas, aceiros, caminhos, luzes, linhas elétricas, ruído. Há apenas o conforto de saber que o mar verde se prolonga ainda por milhares de quilómetros além do horizonte (e, por um momento, esquece-se a angústia de não se saber por quanto tempo mais será assim). 

Vista desde o alto de um tepui. Foto: Paulo Catry
Araras na parede escarpada de um tepui. Foto Paulo Catry

Enormes araras vermelhas, tucanos, japus de vozes alienígenas, bromeliáceas, encontros de flores e frutos novos até à última hora de navegação. Relas, borboletas-morphos mesmerizantes, cotingas, surucuás… 

Ah, faltava dizer: desta feita, enquanto acordados, não chegámos a ver o marsupilami.

* para quem não conhece, o marsupilami (Marsupilamus fantasii, ou, segundo outras autoridades, Marsupilami franquini) é um animal, personagem de banda desenhada inicialmente criado por André Franquin, recriado depois por outros autores. Tem um ar de eventual primata de face incaracterística, pelagem amarela malhada e, sobretudo nos machos, cauda fina incrivelmente comprida. A cauda serve para fazer tudo e a sua força e versatilidade permitem-lhe lidar com todas as situações e com qualquer tipo de perigo ou inimigo.


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.