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Crónicas naturais: espécies vulgares

Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, aponta-nos a transformação da natureza nesta época do ano. Principalmente atento às maravilhas mais comuns, como as papoilas, as andorinhas ou as noselhas. “Tão comuns que já nem damos por elas, mal-empregadas”.

Beira Interior, 7 fevereiro 2022

Esta tarde descobri um núcleo de copinhos Narcissus triandrus numa zona onde não os conhecia. Maravilha. Não que sejam uma espécie de narciso rara ou localizada, muito pelo contrário. São frequentes em quase toda a metade norte do país, do que leio no Guia da Flora de Portugal Continental, essa extraordinária novidade para os naturalistas lusos, um trabalho sublime de André Carapeto, Paulo Pereira e Miguel Porto*. Aliás, este guia foca-se sobretudo nas espécies mais frequentes; muitas raridades também são fáceis de encontrar, se não no campo ou no guia, pelo menos no portal Flora-On, outra preciosidade da história natural nacional, oferta da Sociedade Portuguesa de Botânica. Os copinhos, dizia, não sendo raros, foram inesperados e são uma alegria.

Os copinhos Narcissus triandrus são um dos narcisos mais frequentes em Portugal Continental, embora estejam ausentes do Sul. Foto: Paulo Catry

As espécies raras fazem alguns sonhar com descobertas, porventura outros com fortuna, ou até com projetos de conservação. Mas os animais e as plantas vulgares também dão achamentos e surpresas, como as dos copinhos. Acresce que hoje vi as primeiras papoilas do ano – até as espécies mais corriqueiras têm que se lhes diga, nem que seja simplesmente assinalar-se-lhes a chegada. 

Sol, azul e mais sol ainda. Confinados e desesperados estão os sapos e as salamandras. O natal ainda prometeu; foi chuva de pouca dura, depois veio janeiro de sol e de estrelas geladas. Fevereiro está na mesma. Outrora vulgares, muitos anfíbios vão rareando e este tempo não ajuda. Sem chuva, também já há bermas de estrada a secar e até um grande incêndio na distância. Mas nas tapadas em volta da aldeia está ainda tudo verde. As plantas pouco medraram, floriram cedo. Mais precoces do que o costume, chegaram em força as andorinhas. À hora de sol o ambiente é primaveril.

No quintal despontam agora noselhas-ramosas Romulea ramiflora. São tão pequenas quão surpreendentes. Roxas, violetas, uma ou outra quase branca. Há algo de milagroso numa flor que, sem grande escolta de folhas verdes, brota simplesmente do meio do chão.

Noselha-ramosa Romulea ramiflora. O género Romulea está presente sobretudo em África, particularmente na África do Sul, mas um pequeno número de espécies chega a Portugal e à Europa. Foto: Paulo Catry

Estas noselhas também não são raras, diz o Guia da Flora, pouco importa! Comum mesmo deve ser o predador que as come por aqui, não identifiquei, mas tão rápido como aparecem, lá se vão as frágeis noselhas, nos primeiros dias não escapa uma. Talvez por receio inconsciente, mesmo em tempo limpo estas flores só abrem quando o sol vai alto, durante escassas 3 ou 4 horas por dia.

Também vulgares são os melhores cantores da nossa fauna, não se sabe se terá sido por sorte ou por desígnio divino. Rouxinóis, piscos-de-peito-ruivo, toutinegras-de-barrete. Aves tão comuns que já nem damos por elas, mal-empregadas. Omnipresentes no campo, invadiram as aldeias e, algumas, as vilas e as cidades.

Neste Interior esquecido há espécies raras bem interessantes, houvesse folga para procurar e observar. Quando se trabalha ao computador, mesmo se no exterior, as prospeções pouco vão além do quintal. Ao final do dia de inverno cala-se o coro dos pássaros e quando cai o vento a tranquilidade é absoluta. Fica um só canto despido, melancólico e saliente. O entardecer arrasta-se pelas sombras das colinas alaranjadas e, durante uma hora, o canto prossegue quase sem pausas até às primeiras estrelas.

O melro-preto é, quem diria, a ave mais preciosa destes dias.

O melro-preto Turdus merula é, talvez, a mais omnipresente das aves do nosso país. Foto: Robert Janoska/WikiCommons

* Carapeto et al 2021. Guia da Flora de Portugal Continental. Imprensa Nacional. 


   

Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.