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Crónicas naturais: malandros dos morcegos

O biólogo Paulo Catry mostra-lhe, como se escrevesse num diário pessoal, os céus que se enchem com a passagem épica de milhares de morcegos numa cidade da Guiné-Bissau. Animais com tanto de espantosos como de incompreendidos.

Bolama, Março 2022

A culpa é dos morcegos, claro está: o ébola, a covid-19, a raiva, a gripe das aves. Espera, os morcegos não são aves… mas os mamíferos também têm gripe, sabe-se lá. E depois há os vampiros, três pequenas espécies do continente americano que não recebem direitos de autor por todos os filmes e contos que inspiram, feios, um horror.

Morcegos-frugívoros em voo em Bolama. Foto: Paulo Catry

Fui aluno no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho. Na sala das aulas de biologia estava um armário com vitrines e animais conservados num estado de decadência típica dos embalsamamentos nacionais. Havia uma raposa-voadora que na altura me parecia enorme (provavelmente era mesmo) de asas abertas. Eu sentava-me na carteira, mortalmente enfadado com o ciclo de Krebs, mas maravilhado de pensar que algures lá fora existiam morcegos grandes assim. Valia a pena persistir no estudo da biologia.

Tirando naturalistas aficionados, quem é que se lembra dos morcegos noutras ocasiões que não sejam as do terror e das epidemias? Lembra-se quem os come (e porventura está na origem de zoonoses), sobretudo. São milhões de consumidores pelo mundo tropical. Recordo-me de viajar por Sumatra, com os letreiros nas tascas, equivalentes ao que aqui escreveríamos: “há caracóis”. Também os havia vivos, raposas-voadoras verdadeiramente gigantescas, nas cristas bastante inacessíveis das zonas montanhosas onde vivem ainda orangotangos. Perto dos povoados já não se via quase nada. 

Existem mais de 1.400 espécies de morcegos no mundo, representam uns 20% de todas as espécies de mamíferos. Os que são consumidos pelos humanos são sobretudo os de maior porte, as raposas-voadoras (também denominados morcegos-frugívoros; note-se que há morcegos que comem fruta que não cabem neste grupo dos “morcegos-frugívoros com hífen”, confusão). Dito de outra forma, os grandalhões são os Pteropodidae. Existem cerca de 200 espécies de Pteropodidae, morcegos grandes (mas nem todos!), com focinho de cão, na sua quase totalidade desprovidos de ecolocação, maioritariamente frugívoros e nectarívoros, habitantes do Velho Mundo (na generalidade da Europa não há). 

Na Guiné-Bissau, houve-se muito falar nos morcegos de Bolama, a reputação é merecida.

Frente marítima de Bolama. Foto: Paulo Catry

Bolama, cidade da ilha de Bolama que foi capital do país antes de Bissau. Caminha-se pela vila com edifícios coloniais decadentes, resta um brilhozinho de aprumo, arquitetura de um tempo que já foi, uma grande piscina vazia, a matriz urbana aqui e ali ainda retilínea. Bolama, no seu centro, vive surpreendentemente vazia, são mais as pessoas na periferia. Ao meio-dia de domingo, ao passar por um pequeno largo deserto, damos de caras com uma esquadra da polícia e com vários agentes. Em muitos sítios do mundo seria um momento de desconforto e de eventual assédio aos estrangeiros potencialmente endinheirados. Aqui, convidam-nos para comer. 

Em Bolama ao anoitecer a visão é quase épica. Nuvens de morcegos sucedem-se a hordas de morcegos. Milhares perseguem os milhares que acabam de passar, antecedendo as multidões que vêm logo a seguir. Infelizmente não estávamos preparados para fazer uma contagem, vínhamos com outros propósitos. Mas são muitas dezenas de milhares certamente, os morcegos na Bolama destes dias.

Morcegos e Ulysses Grant, antigo presidente dos EUA que arbitrou favoravelmente a Portugal o contencioso entre portugueses e britânicos pela posse de Bolama. Foto: Paulo Catry

Morcego-frugívoro-flavo Eidolon helvum é a espécie em questão. Um megaquiróptero que não é dos maiores, mas ainda assim bastante impressionante, com os seus 75 cm de envergadura (as maiores raposas voadoras chegam aos 170 cm). Só se vê em Bolama durante uma parte do ano, vai e vem com as estações. Estes animais podem viajar até 370 quilómetros numa noite e migrar entre zonas separadas por pelo menos 2000 quilómetros*. Nalgumas regiões de África reúnem-se em dormitórios gigantescos (até 10 milhões de indivíduos numa agregação na Zâmbia). Em Bolama são capturados e consumidos pelas pessoas, como em quase toda a sua área de distribuição.

O morcego-flavo (Eidolon helvum) é uma espécie essencialmente frugívora, migradora, que pode deslocar-se dezenas de quilómetros por noite para se ir alimentar. Foto: Konrad Bidzinski/WikiCommons

Nas suas rotinas diárias, os morcegos-flavos chegam a ir alimentar-se a distâncias de 88 quilómetros do local de repouso diurno**. Durante a digestão, as multidões de morcegos em voo acartam uma quantidade gigantesca de caroços e pevides, transportam vida. Têm, portanto, enorme importância na dispersão de sementes, mas também na polinização de inúmeras plantas, bem como no controle das populações de insetos (no caso dos insetívoros). Discretos, representam uma enorme biomassa em certas florestas, mais do que tantos outros animais mais notados, e fornecem preciosos serviços dos ecossistemas. 

Também podem causar prejuízos em pomares tropicais, por comerem tanta fruta. E sujam tudo, os malandros dos morcegos! 

É cansativa esta coisa de não vermos nada para além do nosso interesse imediato. Nos morcegos, há mais do que um mundo espantoso por descobrir.

* Richter & Cumming 2008. Journal of Zoology

** Fahr J et al 2015. Plos One


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.