Carvalho. Foto: Marija Gajić/Wiki Commons

Memórias e notícias de mudança: o carvalho de Baptista-Bastos na Ajuda

Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

Quem vem do palácio real e desce a calçada vê à direita o carvalho com as raízes expostas e uma velhice tão antiga que nem a primavera rejuvenesce. […]

A copa do carvalho possui folhagem rala, avermelhada, e os galhos eriçados tocam as seteiras ruças do palácio, confundem-se com as colunas geminadas; uma árvore solitária e nobre.

Dobro os olhos para antigamente e vejo-me nas cornijas ou sobre os tufos da verdura, correndo. Foi ali que soube ter começado a guerra: as pessoas juntavam-se e falavam, pungentes e graves, principiando a imaginar o que iria acontecer. […]

O meu avô […] olhou o rio, que se via numa nesga de entre dois prédios, lá para o fim da calçada. Em redor das raízes da árvore abriam-se papoilas e alcachofras e esparsas azedas, de caule delicado. Arranquei um par de azedas e comecei a chupar-lhes o suco. O meu avô fez o mesmo. Sorrimos, passou uma rapariga, o meu avô seguiu-a com os olhos e, nessa altura, no quartel da Guarda Republicana, um corneteiro tocou.

Armando Baptista-Bastos, Cão Velho entre Flores

Iniciar a Calçada da Ajuda em Lisboa, a partir do seu topo, é como começar um bom livro. Os primeiros passos são logo promissores, há uma rua em que se anunciam açucenas e cheira a cavalariças, memória de cidades velhas. Mas é depois das primeiras linhas, já presos, como num livro, que toda a nossa vista se alarga e a paisagem se abre, bela, vasta, luminosa, dominada pelas águas de um Tejo ao encontro do mar, ora em tons de azul, ora em verde-cinza, com carneirinhos de espuma até à Outra Banda. E torna-se já impossível voltar atrás e não seguir a descida da calçada, ridiculamente estreita para peões do século XXI, olhos postos no casario baixo, alinhado e inclinado, na linha do elétrico resistente, nos pontos verdes das árvores discretas, pincelada elegante num fundo com nuvens e na presença imponente do palácio, fachada agora renovada e exagerada, mas de um branco irresistível que enche todo o lado esquerdo da nossa paisagem.

Região portuguesa na qual se enquadra este excerto literário. Autoria: Daniel Alves

Foi neste belo local da capital que terão passeado, ao longo de várias gerações, muitos avós e netos e também as personagens reais de Baptista-Bastos. Gente com tempo e vagar, o que se tornou raríssimo nos nossos dias, os mais velhos e as crianças, demorados e abertos, mais prontos para descobrir a natureza na cidade. Árvores, líquenes, papoilas, talvez as últimas do ano, bichos-de-conta, na terra, ou vacas-louras entre as folhas caídas, hoje já uma espécie em risco de extinção. 

Ter sabido do começo da Segunda Guerra, junto ao carvalho de “raízes expostas”, terá sido pungente. Haverá alguma paisagem suficientemente bela para o amenizar? Este avô e os residentes do bairro da Ajuda, de vida modesta como hoje, terão imaginado mortes e privações terríveis. E não estavam errados. Só não poderiam vislumbrar os contornos aterradores de um Holocausto.

O escritor de Cão Velho entre Flores lembra-nos que as nossas memórias estão sempre ligadas a locais, a elementos vivos, e que reconstruir a nossa história é também construir a do mundo que nos rodeia. Enquanto componho este texto, um amigo, também ele escritor, envia-me uma imagem do muro do gueto de Varsóvia. Depois de se demorar longamente no local, mostra-me uma Ginkgo biloba que cresce junto ao muro, uma árvore lindíssima, delicada. Digo-lhe que é um elemento associado à memória por excelência, com poder curativo e, por isso, está no lugar certo. Improvável, este ser vivo, nasceu num local especial onde a beleza e a boa nova significam muito.  

Uma má notícia é motivo para abraçar um carvalho. Se não com os braços esticados, e, no caso de um velho carvalho-roble, tentar abarcar um perímetro que pode atingir três metros, estreitar, pelo menos com o olhar, todo o cenário que a árvore nos dá, os seus ramos extensos, livres na direção em que crescem, as folhas, inúmeras, milagrosamente renovadas de vida verde a cada primavera. Só por isso seria bom plantar mais carvalhos em Lisboa. Claro que os jacarandás enchem as ruas de loucura lilás e os novos medronheiros em Monsanto farão abrandar ciclistas para provar os seus frutos embriagantes. Mas a nobreza de um carvalho solitário é imbatível. Este velho exemplar de Quercus terá feito jus ao majestoso Palácio da Ajuda. Hoje já não está lá. 

E é nesse espaço e em toda a colina da Ajuda, com o Tejo ao fundo, que, hoje, avós, pais e netos depositam esperanças. As pessoas “juntam-se e falam”, agora, novamente e com preocupação, de um novo empreendimento de luxo, de novos prédios planeados. E, no entanto, poderia antes ser um espaço de árvores, de papoilas, azedas amarelas e − quem sabe? − de esquilos vermelhos. Um local para brincar, demorar, enraizar, pensar, escrever, redescobrir bichos, e, se preciso for, receber as notícias que tiverem de chegar, amparados pela força da natureza.  


Margarida Lopes Fernandes pertence ao grupo de investigadores ligados ao  “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. Esta é a décima crónica da série Escrita com Raízes.