Tudo o que nos traz este mar que é janela

Carla Lourenço é bióloga marinha e desde sempre apaixonada pela vida do mar. Esta é a primeira crónica que publica na Wilder, no Dia Mundial dos Oceanos.

 

“Viver sem mar é como morar numa casa sem janelas”, escreveu Capicua, enquanto dissertava sobre a sua irremediável ligação ao azul salgado que, mais do que mar, é uma identidade pessoal.

Tal como as janelas se abrem para ruas de experiências, sons e sensações, o mar convida-nos a explorar o que parece ser um Mundo dentro de outro Mundo. Convida-nos a descobrir os segredos que permanecem escondidos da maioria dos humanos. Os mesmos que julgam que já viram de tudo, sem nunca terem aberto os olhos debaixo de água. Sem nunca terem planado a vários metros de profundidade. Sem nunca terem escutado o silêncio que só ali se ouve.

Este mar que é janela revela-nos arco-íris subaquáticos nos recifes de corais de todas as cores, nos nudibrânquios que parecem pintados por um reputado surrealista, nos peixes com padrões que não passam de moda.

 

 

 

Este mar que é janela deixa-nos ouvir os cantos das baleias e os risos dos golfinhos que viajam centenas, milhares de quilómetros – sabemos lá para onde. Uns de forma solitária, numa misteriosa suavidade que se combina com toneladas de ternura. Outros em grandes grupos, rápidos, intrépidos, capitães sem medo.

Este mar que é janela refresca-nos a casa já quente, e que teima em aquecer. Como se de uma corrente de ar se tratasse, leva-nos o calor do equador aos pólos, arejando a casa. E recebe o dióxido de carbono como um convidado infiltrado, mantendo-o cativo, prisioneiro.

 

 

Este mar que é janela dá-nos o ar que nos enche os pulmões, que nos enche de vida. Se descansarmos os olhos nas algas que dançam ao sabor das correntes, vemos, aos poucos, as pequenas bolhas que se formam. Pequenas bolhas – de oxigénio – que crescem lentamente e que, de um momento para o outro, se despedem das algas, partem para a superfície. E chegam até nós.

Deste mar que é janela, espreitam vizinhos que não conhecemos, com histórias de outras vidas, de outras eras. Tímidos, fogem da luz, recuam para a sombra e ali ficam a observar quem passa.

Mas este mar é janela de uma casa antiga. Uma casa que os inquilinos insistem transformar em ruínas. Não todos, é certo. Contam-se pelos dedos de milhares de milhões de mãos, são de uma única espécie: a espécie humana. Partem as paredes que contam histórias dos tempos passados. Queimam os móveis. Esburacam o chão. Sujam todos os cantos.

 

 

E às janelas, tingem os vidros transparentes, de um negro que não sai. Chamam-lhe poluição. Às janelas, cravam machados que arrancam talhadas, que já não são mais a casa de outros seres que lá vivem. É a clara destruição de todo e qualquer habitat com que se cruzam, aniquilando as espécies que encontram no caminho. Às janelas, roubam as caixilharias, os parafusos e as outras peças pequeninas que dão toda a estrutura e suporte. Falam, arrependidos, de sobrepesca. E tentam, mais tarde, substitui-las por outras que não encaixam. 

“Viver sem mar é como morar numa casa sem janelas”. Talvez por isso se encontrem cada vez mais carpinteiros e caixilheiros por esse Mundo fora. Une-os o mesmo sentido de missão. Levam nas malas os saberes, as ferramentas e a vontade de fazer do mar a janela que todos querem ter em casa.

 

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Carla Lourenço é bióloga marinha e explora as poças que se formam na maré baixa desde que começou a andar. Conservacionista, advoga pela protecção do oceano através de acções locais e da educação global. Foi com isso em mente que criou a Straw Patrol.