Crocothemis erythraea, Jardim do Campo Grande, Lisboa. Foto: Albano Soares

Detectives da Natureza à procura de libélulas e libelinhas

Num ápice, a rede de Albano Soares captura a primeira libélula do dia. Todos se juntam à volta deste especialista em insectos, na Lagoa Pequena (Sesimbra). Albano tira o insecto da rede, põe-no num frasco transparente. O ar fica vazio de libélulas e cheio de perguntas. Como distinguir uma libélula de uma libelinha? Será macho ou fêmea? Suspense.

 

A manhã fria e a neblina cerrada desapareceram e o Espaço Interpretativo da Lagoa Pequena, parte integrante da Lagoa de Albufeira, brilha agora ao Sol de Outono. O grupo move-se pelos caminhos à procura de libélulas e libelinhas (conhecidos como Odonata), guiados por Albano Soares, entomólogo do Tagis – Centro de Conservação das Borboletas de Portugal.

O insecto agita-se dentro do frasco transparente. É preto e tem as asas arredondadas. É uma libélula da espécie Diplacodes lefebvrii, a mais pequena de Portugal. “É um macho pois tem uma dilatação no abdómen. Nas fêmeas não vemos essa saliência”, mostra Albano. Enquanto o grupo observa e regista os pormenores em blocos de notas ou com as máquinas fotográficas, a libelinha é devolvida à natureza.

 

Dipladoces lefebvrii, Lagoa Pequena. Foto: Albano Soares

 

Vanessa Amigo, professora de ciências naturais no ensino básico, faz parte do grupo e quer saber mais sobre biodiversidade para, como diz, “partilhar com os alunos e articular melhor os conteúdos programáticos.”

Alguém pergunta como se distinguem libélulas e libelinhas. “A grande diferença está nas asas. Ambas têm dois pares de asas mas nas libelinhas os dois pares são iguais enquanto que nas libélulas as asas anteriores e as posteriores são diferentes”, ajuda Albano. E acrescenta uma dica útil. “Geralmente quando estão em repouso as libélulas mantém os dois pares de asas abertas e as libelinhas fecham-nas.” E outra. “As libélulas são maiores e mais robustas do que as libelinhas. Mas isso não é regra, especialmente nos ambientes tropicais, onde até pode acontecer o contrário”.

Eva e Sílvia encontraram um gafanhoto e trazem-no nas suas redes. Eva Monteiro é colega de Albano no Tagis, e Sílvia Pina, especialista em gafanhotos e bolseira de investigação no CIBIO-InBIO (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos). Ambas estão entusiasmadas com este espaço, rico em biodiversidade. Especialmente em insectos. “Encontrámos um gafanhoto macho do género Aiolopus” diz Sílvia Pina, agitando a sua rede com o insecto. Albano Soares aproveita para alertar o grupo: “Não se pode capturar animais selvagens sem autorização. É necessária uma licença emitida pelo Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, que deve acompanhar os investigadores nos trabalhos de campo.”

As informações ficam a ecoar na cabeça à medida que o grupo segue atrás do guia, num caminho entre caniços e juncos, bordeado por salgueiros, choupos e pinheiros.

 

Libélulas, gafanhotos, exúvias

 

“Ninguém respira. Está ali outra. Por favor, não apontem com o dedo. Pode pensar que é o bico de uma ave e foge. É quase preciso fazer apneias para tirar boas fotos” ironiza Albano ao aproximar-se do insecto. Depois de o fotografar, captura-o com a rede e coloca-o no frasco para o grupo conseguir observar mais de perto.

Em Portugal estão identificadas mais de 60 espécies de Odonata, um nome que deriva do grego e se refere à forte armadura bocal destes predadores, carnívoros em qualquer das fases do seu ciclo de vida: larvar e adulto.

Estes insectos – autênticos mestres na arte da caça por causa da sua excelente capacidade visual e voos acrobáticos – dependem de fontes de água doce, onde a maioria deposita os ovos e se desenvolvem as fases larvares ou imaturas. A maioria é sensível à qualidade das águas (o teor de oxigénio é um dos factores limitantes). Utilizando este critério, o grupo das libélulas e libelinhas pode servir como indicador ambiental.

Desta vez foi apanhada uma libelinha. “Esta é a libelinha mais pequena que se conhece em Portugal, a Sympecma fusca. É muito difícil encontrar esta espécie pois tem grande capacidade de camuflagem, entre a vegetação. A melhor oportunidade para a ver é quando está a voar, e foi este o caso” diz o especialista, libertando depois a libélula.

 

Sympecma fusca, Lagoa Pequena. Foto: Albano Soares

 

“Ver um adulto num local não quer dizer que se reproduza nesse sítio” alerta Albano Soares. Para ter a certeza que se reproduzem é preciso encontrar exúvias (estruturas libertadas durante as transformações das fases larvares, as metamorfoses). Enquanto conversa, o entomólogo olha à sua volta até parar num passadiço de madeira. Ouve-se o correr da água. “Este é um bom local para procurar exúvias.”

Albano não colecciona adultos nem precisa de os matar, pois tem uma colecção dessas estruturas que, sendo feitas de quitina (um açúcar complexo), se conservam por longos anos. O registo dos vários locais onde são encontradas ajuda a conhecer a distribuição desses insectos. As fotografias são testemunhos essenciais que complementam essas evidências.

As libélulas e libelinhas são de extrema importância no controlo e equilíbrio das cadeias alimentares e na gestão dos ecossistemas. Para a sua defesa e conservação é essencial estudar e conhecer o seu comportamento, a sua distribuição geográfica e perceber qual é a sua vulnerabilidade.

É impossível não reparar numa libélula vermelha que voa por perto. Pouco depois Albano Soares identifica a descoberta: “É a Crocothemis erythraea, fácil de identificar pois, além da cor típica, tem uma escama na parte final do abdómen. É óptima para combater os mosquitos hematófagos, que se alimentam de sangue.”

 

Crocothemis erythraea, Jardim do Campo Grande, Lisboa. Foto: Albano Soares

 

A libélula debate-se entre os dedos de Albano Soares. “A melhor maneira de pegar numa libélula ou libelinha é sempre pelas asas, não é prejudicial nem estragamos as asas como acontece às das borboletas”. Dito isto, o insecto vai à sua vida.

 

Aranha-tigre, imperadores e as bate-cú

 

Além de libélulas, libelinhas e gafanhotos, o passeio naturalista faz outra descoberta. Uma aranha-tigre, com duas bolsas por perto (são os depósitos dos seus ovos, as ootecas), numa teia de cerca de meio metro de diâmetro, suspensa entre os caules das plantas.

“Como podem ver, tem oito patas e os insectos têm seis. Aranhas e insectos são ambos artrópodes mas pertencem a classes diferentes” identifica Eva Monteiro.

As descobertas sucedem-se e alguém encontra a maior libélula da fauna portuguesa. A colorida libélula imperador (Anax imperator) é das mais conhecidas.

 

Anax imperator, Lagoa de Mira. Foto: Albano Soares

 

“O tórax é verde e o abdómen azul. Pela coloração das asas podemos ter uma estimativa da sua idade, uma vez que, com o tempo, as asas vão ficando amareladas ou castanhas” diz Albano Soares.

Uma águia-de-asa-redonda paira num céu azul, por cima destes detectives da natureza e de Eva e Sílvia que acabaram de descobrir um grilo do bosque (da mesma ordem dos gafanhotos) numa zona coberta por pinheiros.

Um pouco mais à frente ouve-se Albano Soares: “Esta é uma prima da libélula imperador, a Anax parthenope, um pouco mais pequena e com umas cores ligeiramente diferentes. Pode ser confundida com a Anax imperator, por um observador menos experiente.”

 

Anax parthenope, Lagoa da Palha, Palmela. Foto: Albano Soares

 

Os nomes científicos podem parecer estranhos mas têm a vantagem de ser precisos na identificação. Os nomes comuns são muito mais fáceis de pronunciar mas, de acordo com a região do país, podem variar para a mesma espécie, provocando dúvidas na identificação. “Existem nomes comuns engraçados, como as gaiteiras e as bate-cú”, exemplifica Albano Soares.

Por estes dias ainda há muitas áreas subdesenvolvidas no estudo dos insectos, como por exemplo o estudo das formigas, salienta Albano. “Não há apoios suficientes para conseguirmos observar e estudar os animais. A ciência é um serviço que, muitas vezes, está mal servido e em constante evolução. É preciso ir para o campo várias vezes, realizar os registos, articular os resultados.” refere Albano Soares.

Desta vez, o grupo registou uma espécie de libelinha e quatro espécies de libélulas. Há por aí mais detectives da natureza?