Foto: Isidre blanc/Wiki Commons
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O que procurar no Inverno: os muscaris

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Carine Azevedo dá-nos a conhecer estes bolbos primaveris, que por estes dias já exibem as suas bonitas flores de tons azuis-violeta.

Embora estejamos oficialmente em pleno inverno, as cores alegres da primavera já vão surgindo um pouco por todo o lado com o despontar dos primeiros bolbos primaveris.

Cá em casa, são os muscaris (Muscari neglectum) os primeiros a brindar-me com as suas belas flores e a colorir as floreiras e canteiros do meu jardim.

O Muscari

O Muscari é uma planta herbácea perene, também vulgarmente conhecida como jacinto-de-uva, jacinto-das-uvas, nazarenos ou penitentes.

É uma planta pequena, que pode crescer até 30 cm de altura, e que se desenvolve a partir de um bolbo subterrâneo, ovóide e protegido por uma túnica castanho-clara a castanho-escura. À volta do bolbo principal é frequente a formação de pequenos bolbilhos.

Foto: JLPC / Wikimedia Commons

Cada bolbo é formado por três a nove folhas verdes, lineares ou ligeiramente lanceoladas e compridas. As folhas são muito estreitas, arqueadas, e surgem geralmente prostradas no chão, ainda antes do surgimento das flores.

A floração ocorre entre fevereiro e abril. As hastes florais têm entre 10 a 30 centímetros de altura e são erectas e verdes, ainda que por vezes avermelhadas na base. As flores surgem no topo das hastes florais, dispostas numa inflorescência elipsoide, densa e oval, de três a quatro centímetros de comprimento.

Cada inflorescência contém entre 10 a 15 flores hermafroditas, cada uma com quatro a cinco milímetros de comprimento. A disposição das flores sobre a inflorescência faz lembrar pequenas uvas reunidas sobre um cacho, daí o seu nome comum “jacinto-das-uvas”.

Foto: Zeynel Cebeci/Wiki Commons

As flores apicais são estéreis e erectas e compreendem 25 a 45% do total das flores da inflorescência. São diferentes das flores férteis, que se dispõem na parte inferior da inflorescência e de forma pendente e que são geralmente mais escuras.

As pétalas encontram-se unidas entre si, são azul-violeta, com uma suave cor branca na ponta, formando uma coroa a toda a volta da flor.

Já o fruto é uma cápsula com três lóculos, ou seja, compartimentos. Cada lóculo contém duas sementes subglobosas, muito pequenas.

Foto: Syp/Wiki Commons

Distribuição e Habitat

O muscari cresce de forma espontânea em toda a região do Mediterrâneo, mas também ocorre naturalmente em toda a Europa Central, do Sul e do Leste, no Cáucaso, no Oeste da Ásia e no Norte de África.

Em Portugal ocorre um pouco por todo o território, sendo mais comum em toda a faixa do Litoral e nas regiões do Sul.

É comum a sua presença em campos abandonados, matagais, campos agrícolas, prados de sequeiro, em zonas de afloramentos rochosos expostos, preferencialmente em zonas de calcário.

Esta planta tem preferência por locais com exposição solar plena, embora também cresça bem em ambientes de semi-sombra. Tudo depende das condições climáticas da região onde se desenvolve.

Foto: Isidre blanc/Wiki Commons

Por outro lado, a nível edáfico, os muscaris são capazes de se desenvolver bem em quase todo o tipo de substrato, desde que seja garantida uma boa drenagem. São, aliás, intolerantes ao encharcamento. Se o substrato ficar demasiado encharcado, têm dificuldades em desenvolver-se, podendo mesmo acabar por morrer.

Em contrapartida, suportam as temperaturas baixas e condições pontuais de geada.

Asparagaceae

O muscari é uma espécie da família Asparagaceae que, segundo o Plants of the World Online, compreende 119 géneros botânicos e cerca de 2500 espécies distribuídas em quase todo o mundo.

Os membros desta família são muito diversificados. Ainda que na sua maioria sejam plantas herbáceas, também dela fazem parte inúmeras espécies ornamentais com porte arbóreo e arbustivo, como a gilbardeira (Ruscus aculeatus) e o dragoeiro (Dracaena draco), por exemplo.

Gilbardeira (Ruscus aculeatus). Foto: John Redmond/WikiCommons

À mesma família pertencem igualmente espécies com elevado valor económico, como o espargo (Asparagus officinalis), muito utilizado e apreciado na alimentação humana, e as agaves: a Agave sisalana, amplamente cultivada para produção de sisal, e a Agave tequilana, utilizada na produção de tequila, por exemplo.

Em Portugal Continental há registo de pouco mais de 30 espécies nativas da família Asparagaceae, distribuídas por 13 géneros botânicos, algumas das quais bem conhecidas: a gilbardeira, a cila (Scilla monophyllos), o jacinto-dos-campos (Hyacinthoides hispanica), a cebola-albarrã (Drimia maritima) e o selo-de-salomão (Polygonatum odoratum).

Cebola-albarrã (Drimia maritima). Foto: Javier Martin/Wiki Commons

Existem ainda muitas outras espécies menos conhecidas e com estados de conservação muito especiais: o jacinto-azul-do-barrocal (Bellevalia dubia subsp. hackelii), a Anthericum liliago e a Aphyllanthes monspeliensis são alguns exemplos.

O jacinto-azul-do-barrocal (Bellevalia dubia subsp. hackelii) é uma espécie endémica portuguesa – mais especificamente das regiões do Baixo Alentejo e do Algarve – que consta do Anexo IV da Diretiva Habitats e está classificada como espécie Pouco Preocupante em Portugal Continental, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla inglesa).

Jacinto-azul-do-barrocal (Bellevalia dubia subsp. hackelii). Foto: Cristina Estima Ramalho/Flora-On

Quanto à Anthericum liliago, está classificada como espécie Vulnerável em Portugal Continental. De acordo com a Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, esta classificação deve-se a existirem apenas quatro localizações identificadas desta espécie em todo o território nacional. A mesma fonte bibliográfica refere que os núcleos populacionais desta espécie encontram-se severamente fragmentados, muito distantes entre si e constituídos por um número muito reduzido de indivíduos maduros.

Por sua vez, a Aphyllanthes monspeliensis é a única espécie que compõe o género Aphyllanthes e está classificada como espécie Em Perigo em Portugal Continental. Segundo a Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, a sua distribuição em Portugal restringe-se ao troço internacional do rio Douro, estimando-se a existência de apenas cerca de 275 indivíduos.

Aphyllanthes monspeliensis. Foto: Paulo Ventura Araújo/Flora-On

No Arquipélago da Madeira há registo de cinco espécies nativas, distribuídas por três géneros botânicos, das quais algumas são espécies endémicas da região – como é o caso do Asparagus nesiotes subsp. nesiotes, do Asparagus umbellatus subsp. lowei e do Ruscus streptophyllus.

Já nos Açores há registo de uma única espécie nativa, o dragoeiro (Dracaena draco subsp. draco).

Versátil e com um estilo único

Os muscaris estão entre os primeiros bolbos primaveris a florir e entre os primeiros a despontar as suas folhas, sendo uma planta ornamental de excelência.

São muito comuns em jardins e são incrivelmente versáteis, com um estilo único, capazes de criar pequenas “obras de arte” impressionantes em projetos de arquitetura paisagista, transformando os canteiros em ambientes inesquecíveis.

Foto: Parent Géry/Wiki Commons

Podem ser cultivados diretamente nos jardins, em canteiros e bordaduras, em combinação com outras espécies bolbosas, como os jacintos, narcisos e tulipas, mas também com outras plantas herbáceas, como as margaridas, anémonas e violetas, ou simplesmente isolados em pequenos tufos, entre arbustos ou debaixo das árvores. Também podem ser cultivados em vasos e floreiras. Sozinhos ou em combinação com outras plantas, as possibilidades são infinitas.

Como a maioria das plantas bolbosas, o muscari possui substâncias tóxicas, pelo que nenhuma das suas partes deve ser ingerida. Também se aconselha muito cuidado no manuseamento dos bolbos, até porque estes contêm um ácido que atua como uma saponina, podendo causar diarreia e outro tipo de doenças.

O papel dos insectos na polinização e dispersão do muscari

As plantas do género Muscari são particularmente especiais, pois se é verdade que procuram ser atrativas para os insectos, também são seletivas na sua escolha. É caso para dizer que são plantas que gostam de atrair os visitantes para depois lhes barrar a entrada.

As flores superiores dos muscaris, brilhantes e azuis, são estéreis e servem apenas para “enganar” os insetos polinizadores. Por outro lado, as flores verdadeiras têm aberturas tão estreitas que só dão passagem aos insectos de menor dimensão.

Embora ocorra autopolinização, a polinização destas plantas é essencialmente entomófila, ou seja, realizada por insectos. Os insectos são atraídos pelo seu aroma e cores e ajudam a transferir o pólen entre as suas flores.

Foto: Nicolas Weghaupt/Wiki Commons

As formigas, por outro lado, são as principais responsáveis pela dispersão das sementes, processo chamado de mirmecocoria. As sementes de muscari possuem eliossomas – formações que contêm uma gordura adjacente, bastante atrativa e que serve de alimento para as formigas. Estas transportam as sementes a longas distâncias até ao formigueiro e alimentam-se dessa gordura sem danificar as sementes, que mais tarde poderão dar origem a um novo indivíduo.

O género Muscari em Portugal

A origem científica do nome botânico desta espécie é particularmente curiosa. Embora a maioria dos muscaris sejam inodoros, o nome do género Muscari deriva do grego moderno moschàri = “jacinto-de-uva”, ou do grego clássico mòschos = “almíscar” devido ao aroma almiscarado de algumas espécies deste género.

O restritivo específico neglectum significa “negligenciado ou ignorado”, muito provavelmente indicando que quem o nomeou lhe terá dado pouca importância ou valor. Por outro lado, poderá também dever-se ao facto de ser uma planta que não necessita de grandes cuidados para encantar com as suas belas flores.

Das 73 espécies reconhecidas em todo o mundo, exclusivas da região mediterrânica e do Sudoeste Asiático, apenas duas são nativas de Portugal Continental, não havendo registo da presença deste género botânico nas Regiões Autónomas.

Além do muscari ou jacinto-de-uva (Muscari neglectum), também ocorre de forma espontânea no território continental o jacinto-das-searas, também conhecido por cebolinho-de-flor-azul ou jacinto-de-tapete (Muscari comosum).

Jacinto-das-searas (Muscari comosum). Foo: Miguel Porto/Flora-On

As duas espécies partilham as mesmas condições ecológicas e épocas de floração. A característica que mais facilmente permite a sua distinção é a flor.

As flores apicais do jacinto-das-searas também são estéreis, de cor violeta, e formam um corimbo muito característico desta espécie: com pedicelos compridos, virados para cima e dispostos na extremidade superior da inflorescência, e marcadamente diferentes das férteis. As flores férteis são mais escuras e são mais ou menos erectas.

Se gostou desta pequena planta bolbosa de um azul-violeta intenso e a quer ver crescer no seu jardim, lembre-se que os bolbos devem ser plantados no outono, para que tenha belas flores na próxima primavera. Até lá, desfrute destas magníficas plantas na natureza.


Dicionário informal do mundo vegetal:

Bolbo – caule subterrâneo de eixo curto cujas folhas, transformadas em escamas, contêm substâncias nutritivas de reserva, e que se mantém ativo ao longo de todo o ano, ainda que a parte aérea seja renovada anualmente.

Túnica – membrana que reveste o bolbo.

Bolbilho – bolbo mais pequeno, que se forma na axila das escamas de um bolbo maior, a partir do qual se pode originar uma nova planta.

Linear – folha estreita e comprida, com margens quase paralelas.

Lanceolada – folha com forma de lança.

Inflorescência – forma como as flores estão agrupadas numa planta.

Hermafrodita – flor que possui órgãos reprodutores femininos (carpelos) e masculinos (estames).

Cápsula – fruto seco, com várias sementes, que abre e deixa as sementes cair quando maduro.

Lóculo – cavidade ou compartimento do fruto, onde se alojam as sementes.

Corimbo – inflorescência em que as flores se elevam mais ao menos ao mesmo plano, ainda que os seus “pés” possam ter tamanhos diferentes.

Pedicelo – “pé” que sustenta a flor.


Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.

Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas. 

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