Foto: Liam Maguire
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O que procurar no Outono: o ranúnculo-flámula

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A planta nativa que Carine Azevedo nos traz esta semana está presente por todo o país, incluindo a Madeira e os Açores. Por estes dias, ainda podemos encontrar as suas pequenas flores amarelas a encherem de cor as margens de rios e lagos e outras zonas húmidas em Portugal.

 

No mercado de flores, há uma espécie exótica que é a mais cultivada comercialmente, e da qual se obtiveram inúmeras variedades e cultivares: o ranúnculo (Ranunculus asiaticus).

Os ranúnculos são muito utilizados como plantas ornamentais em jardins e como flor de corte para decorar ambientes interiores. Muitas vezes confundidas com a flor da roseira, as suas flores têm uma textura mais delicada e aveludada.

Existem imensas variedades de ranúnculos que podemos encontrar nas paisagens naturais em Portugal, embora menos exuberantes no tamanho e no tipo de flor. O ranúnculo-flámula (Ranunculus flammula) é uma dessas pequeninas plantas, que passa completamente despercebida à maioria das pessoas.

Vamos conhecê-la um pouco melhor!

Ranunculaceae

A família Ranunculaceae, a que pertence o ranúnculo-flámula, compreende mais de 3.700 espécies e 55 géneros botânicos distribuídos um pouco por todo o mundo.

Esta família inclui muitas plantas silvestres populares, bem como ornamentais, incluindo as anémonas (Anemone spp.), as esporas (Delphinium spp.), as aquilégias (Aquilegia spp.), os ranúnculos (Ranunculus spp.) e as clemátis (Clematis spp.). O género Ranunculus é o mais representativo, com cerca de 1.600 espécies e uma distribuição cosmopolita.

Em Portugal, são 66 os Taxa desta família que ocorrem um pouco por todo o território continental, distribuídos por onze géneros botânicos, incluindo o género Ranunculus, que está representado por 36 Taxa.

No arquipélago dos Açores, são cinco as espécies nativas – todas elas do género Ranunculus – embora também ocorram outras espécies exóticas desta família. Já no arquipélago da Madeira, são dois os géneros nativos: o género Ranunculus, representado por seis espécies, e o género Delphinium, representado por uma espécie endémica da região: o Delphinium madeirense. Como acontece com os Açores, são inúmeras as outras espécies desta família que terão sido aí introduzidas.

As plantas da família Ranunculaceae podem ser arbustivas, herbáceas e trepadeiras, perenes ou anuais, e habitar ambientes terrestres ou mesmo aquáticos.

A maioria das espécies deste grupo produzem compostos altamente tóxicos. No entanto, se forem bem cozinhados algumas destas plantas podem ser consumidas, embora a sua ingestão em grande quantidade possa causar problemas de saúde. Algumas espécies também podem ser muito prejudiciais para o gado.

Muitas plantas da família Ranunculaceae também são utilizadas na medicina, como a Nigella sativa, a Ranunculus ficaria, a Ranunculus flammula, a Hydrastis canadensis e a Helleborus foetidus, e também na culinária, como especiarias na cozinha oriental. Isso acontece particularmente na cozinha indiana, como é o caso da Nigella sativa, conhecida como cominho negro.

Ranúnculo-flámula

O ranúnculo-flámula é uma planta rizomatosa, herbácea, perene, que pode medir entre 15 a 50 centímetros de altura e raramente chega aos 90 centímetros.

Foto: Jacqui Geux/Biodiversity4All

Possui um rizoma que pode ser alongado, com raízes verticiladas, ou curto e truncado; muitas vezes estolonífero, ou seja, formado por estolhos.

Os caules são verdes ou avermelhados, eretos ou rasteiros, estriados e formados por vários raminhos. Quanto às folhas variam na forma, mas são todas simples, inteiras ou de margem ligeiramente dentada. As folhas da roseta basal são pecioladas, ovado-elípticas a lanceoladas, enquanto que as superiores são linear-lanceoladas a lineares e na maioria das vezes sésseis, isto é, inserem-se diretamente no caule.

O ranúnculo-flámula possui uma época de floração longa, que ocorre de março a dezembro; raras vezes até janeiro do ano seguinte. O período de maior profusão de flores acontece de junho a setembro. As flores em forma de taça são actinomórficas (simétricas, divisíveis em várias partes iguais), hermafroditas (femininas e masculinas), pedunculadas, amarelas e com prefloração imbricada. Surgem em hastes florais longas, de uma a muitas flores.

Foto: Liam Maguire

Já a corola, com seis a 20 milímetros de diâmetro, é formada por cinco pétalas obovadas, amarelas brilhantes, duas vezes maiores do que as sépalas. Estas últimas são verde-amareladas, patentes, com pêlos aplicados, e apresentam uma ampla margem membranosa.

Por sua vez, o fruto é denominado de poliaquénio, uma vez que é constituído por inúmeros aquénios (frutos secos com uma só semente). Estes são obovais, parecendo um ovo invertido, e em forma de quilha, lisos, com rebordos pouco salientes e providos de picos curtos.

O ranúnculo-flámula é uma planta auto-fértil.

Origem e habitat

O ranúnculo-flámula é uma planta sub-cosmopolita, estando presente na maior parte das regiões do globo, embora cresça de forma espontânea principalmente nos biomas temperados do Hemisfério Norte. Esta espécie também ocorre na Austrália e na Nova Zelândia, onde terá sido introduzida no passado.

Em Portugal, está presente em grande parte do território continental, sendo porém mais frequente nas regiões a norte do rio Tejo. Também é uma espécie nativa dos arquipélagos da Madeira e dos Açores.

O ranúnculo-flámula é uma planta ripícola, pois ocorre geralmente em zonas húmidas e terrenos pantanosos como pauis, turfeiras, valas e prados húmidos e ainda nas margens de cursos de água, como lagoas, lagos e rios.

Esta planta requer locais de exposição solar plena, embora tolere a sombra parcial. É resistente à geada e suporta temperaturas até – 7ºC. A nível edáfico, não é exigente no tipo de solo, podendo ocorrer tanto em solos leves (arenosos), como em solos pesados (argilosos), com pH ácido, neutro ou levemente alcalino. No entanto, requer que os solos estejam permanentemente húmidos, preferencialmente encharcados e com má drenagem, podendo mesmo crescer em zonas de água rasa.

O ranúnculo-flámula é uma planta ornamental de excelência. Requer poucos cuidados de manutenção e fica bem em qualquer lago ou jardim aquático. É a solução ideal para um jardim com terreno permanentemente encharcado.

Foto: Barry Walter/Biodiversity4All

No habitat natural, esta planta oferece a cobertura natural perfeita para a vida selvagem e é uma fonte de alimento fundamental para alguns animais, nomeadamente algumas aves aquáticas que, ao alimentarem-se dos seus frutos, favorecem a dispersão das sementes, que também se podem dispersar pelo movimento da água.

As suas flores delicadas, em forma de botão de ouro, atraem numerosos insetos polinizadores que se alimentam do seu néctar e do pólen e simultaneamente favorecem a dispersão deste último.

A mosca-das-flores-comum (Episyrphus balteatus), a mosca-das-flores-alongada (Sphaerophoria scripta), a pequena abelha Andrena minutula, o abelhão-precoce (Bombus pratorum), o abelhão-terrestre (Bombus terrestris) e a joaninha Calvia quatuordecimguttata são alguns dos inúmeros insectos que visitam regularmente as flores do ranúnculo-flámula.

Mosca-das-flores-comum. Foto: Donald Hobern/Wiki Commons

Planta tóxica

A denominação científica da espécie, além de estar relacionada com as características próprias do seu habitat natural, também pode ser uma referência ao elevado nível de toxidade de toda a planta.

O nome genérico Ranunculus deriva do latim antigo e significa “pequena rã”, provavelmente porque esta e outras plantas do género crescem comumente em lugares húmidos, perto da água, como as rãs. Já o restritivo específico flammula vem do latim “flamma”, que significa “chama”, provavelmente relacionado com o “sabor” ardente de todas as partes da planta.

O ranúnculo-flámula é uma planta altamente tóxica. Todas as partes possuem elevados níveis de toxicidade quando frescas, requerendo por isso algum cuidado no seu manuseamento. As toxinas só são destruídas pelo calor ou pela secagem.

A protoanemonina é uma toxina que existe em grandes quantidades nesta planta e noutras do mesmo género. O contacto com a seiva desta espécie pode provocar irritação, erupção cutânea, vermelhidão, sensação de queimadura ou bolhas na pele ou na mucosa.

Foto: Поляков Александр/Biodiversity4all

Por outro lado, a ingestão de qualquer parte desta planta fresca pode causar queimadura na boca, dores abdominais, náuseas, vómitos, tonturas, espasmos ou diarreia. Em casos mais graves pode mesmo levar a uma hepatite aguda, icterícia ou paralisia.

Existem ainda registos de que animais de pastoreio, nomeadamente cavalos, terão morrido após a ingestão desta planta. Também há informação de que terá causado problemas em alguns cães e gatos.

Por outro lado, a planta é toda ela rubefaciente. A tintura obtida da maceração de partes deste ranúnculo pode ser utilizada no tratamento de úlceras e de gangrenas, enquanto que a água destilada obtida da planta pode servir de emético inofensivo.

Como acontece com qualquer outra espécie botânica, deve sempre consultar um profissional de saúde antes de a utilizar para fins medicinais.

Esta bela flor silvestre está por estes dias em flor. Descubra-a e partilhe as fotografias nas redes sociais, com #oqueprocurar #plantasdeportugal #floranativa #àdescobertadasplantasnativas.

 


Dicionário informal do mundo vegetal:

Taxon (no plural taxa) – nível taxonómico de um sistema de classificação científica de seres vivos (Ex. Família, Género, Espécie, Subespécie).

Rizomatosa – planta cujo caule é subterrâneo – rizoma – que cresce geralmente na horizontal, com aspeto de raiz, composto de escamas e gemas como se de um caule aéreo se tratasse.

Herbácea – planta de consistência não lenhosa e verde.

Perene – planta que tem um ciclo de vida longo e que vive três ou mais anos.

Verticilado – quando 3 ou mais órgãos semelhantes (por ex. ramos, folhas) se dispõem no mesmo nó.

Truncado – que termina por uma linha ou plano perpendicular ao comprimento ou à altura.

Estalonífero – formado por estolhos – rebentos ou ramos basais, longos, delgados e prostrados (estendidos sobre o solo), capazes de enraizar nos nós e formar novas plantas.

Roseta – conjunto de folhas muito próximas, dispostas radialmente e a uma altura semelhante, que se desenvolvem na base do caule da planta.

Peciolada – provida de pecíolo – pé da folha que liga o limbo ao caule.

Ovada – com a forma de um ovo mais larga perto da base.

Elíptica – com forma de elipse, mais larga no meio e com o comprimento duas vezes a largura.

Lanceolada – com forma de lança.

Linear – estreita e comprida, com margens quase paralelas.

Séssil – não possui pecíolo (haste de suporte), inserindo-se diretamente no caule.

Actinomórfica – flor com simetria radial, ou seja a flor pode ser dividida em várias partes iguais.

Hermafrodita – flor que possui órgãos reprodutores femininos (carpelos) e masculinos (estames).

Pedunculada – que tem pedúnculo – “Pé” que sustenta a flor.

Prefloração imbricada – quando há uma peça floral (pétala, sépala ou tépala) que simultaneamente sobrepõe e é sobreposta por outras semelhantes como as escamas dos peixes ou as telhas de um telhado.

Corola – conjunto das pétalas (peça floral, geralmente colorida ou branca), que protegem os órgãos reprodutores da planta.

Obovada – com a forma de um ovo invertido, mais estreita na base do que no ápice.

Sépala – peça floral, geralmente verde, que forma o cálice e que protege externamente a flor.

Patente – que se insere segundo um ângulo próximo de 90º.

Poliaquénio – formado por vários aquénios – fruto seco, indeiscente (não se abre naturalmente para libertar as sementes) e monospérmico (possui apenas uma semente).
Quilha – linha saliente longitudinal, na face inferior de um órgão assemelhando-se à quilha de um barco.

Auto-fértil – planta cujas flores produzem sementes como resultado da polinização pelo pólen da mesma flor ou de flores do mesmo indivíduo.

 


Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.

Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas. 

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