O que temos em comum com o naturalista açoriano que escrevia a Darwin?

A folha de papel onde Francisco desenhou a lula está amarelada. A caixa de lata onde guardou conchas e que, originalmente, continha cigarros, tem a tampa enferrujada. O forro da caixa de charutos onde pôs dezenas de moluscos, bivalves e gastrópodes está a descolar.

O entusiasmo de Francisco pela História Natural começou quando tinha 12 anos. Uma década depois era um naturalista autodidacta, que começou pelos moluscos terrestres nos Açores, a sua terra natal. Sem formação na área, pediu a especialistas que o orientassem a fazer o que mais gostava. E foi o que bastou. O seu entusiasmo fez o resto.

 

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Hoje, 128 anos depois da morte de Francisco Arruda Furtado, olhamos para a sua folha de papel com a lula e para as caixas de lata e de charutos com conchas. Fazem parte de um espólio que resistiu ao tempo para nos dizer que vale a pena tentar entender como funciona o mundo natural. Mesmo quem não tem formação nem recursos. Porque foi isso que Francisco fez. Como certa vez que usou um microscópio emprestado de um amigo para dissecar moluscos e conhecer a sua anatomia interna, até ter mais possibilidades. E chegou longe.

Na inauguração da exposição “Francisco Arruda Furtado, discípulo de Darwin”, a 6 de Março, o Museu Nacional de História Natural e da Ciência encheu-se de gente. Curiosos para saber como é que este autodidacta açoriano do século XIX, que morreu aos 33 anos, trocava cartas com Charles Darwin, o pai da Teoria da Evolução. Como deixou tanto trabalho feito, tantos estudos, esboços, desenhos, em tão pouco tempo?

 

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Estarão essa dedicação e entusiasmo ao alcance de todos? Até onde podem chegar os cidadãos naturalistas? A resposta pode estar nas três salas da exposição dedicadas a Francisco e que, segundo explicou um dos comissários da exposição, David Felismino, pretendem “mergulhar o público no espírito da época”.

“Tivemos o cuidado de não montar uma exposição demasiado científica e biográfica, porque poderia ser pouco perceptível”, disse David à Wilder, no museu. A exposição é dominada pela ilustração, quer sejam os esboços feitos a lápis de grafite ou de cor, até às artes finais penduradas nas paredes. Na verdade, “dos mais de 3000 documentos do espólio de Arruda Furtado, mais de 600 são desenhos.”

 

 

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Antes de entrarmos nas três salas da exposição, perguntámos por que razão deve ser visitada. “Primeiro, pela figura de Arruda Furtado que, em si mesma, já é uma mensagem positiva. É bom lembrar, nesta altura em que duvidamos das nossas capacidades enquanto povo português, alguém que, só tendo o liceu, foi extremamente bom no seu tempo, que teve reconhecimento até a nível internacional”, disse David.

Uma segunda razão é a “beleza impressionante” dos desenhos deste naturalista autodidacta, um dos pioneiros da antropologia física e da malacologia. “Há um rigor no desenho que é brilhante. Mas também tem obras lindíssimas de divulgação do seu trabalho à sociedade, numa vertente mais artística”, acrescentou.

 

Uma visita à exposição

 

A primeira sala é dedicada à relação de Arruda Furtado com Charles Darwin. Uma das jóias da exposição é a correspondência com o cientista inglês. Na altura, Arruda teria 27 anos e Darwin 72. “A relação entre ambos durou dois anos. Arruda, defensor da teoria da evolução, seguiu os conselhos de Darwin, que o encaminhou, interessando-se especialmente pela questão da origem açoriana, das espécies insulares e da distribuição das espécies terrestres e marinhas”, explica David.

 

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Tendo em conta que já tem quase 150 anos, “este é um espólio muito bem preservado. Fizemos apenas recuperações pontuais, como o restauro de papel”. Parte do espólio ficou no museu quando Arruda Furtado lá trabalhou, no final da vida. O restante foi doado pela nora em 1953. “É raro vermos um espólio tão completo e coeso: há registos de observações no campo, rascunhos, cadernos inteiros, publicações finais, correspondência com 90 personalidades da época, cartas de Darwin”.

“Conhecer é classificar. Nada pode ser conhecido que não possa ser classificado, isto é, comparado, estudado naquilo que o separa e naquilo que confunde com as outras coisas”.
–FRANCISCO ARRUDA FURTADO (1885)

Ali mesmo ao lado está a segunda jóia da exposição. O museu, com a ajuda do Teatro São Carlos para o guarda-roupa, replicou todos os artigos que Arruda Furtado planeou transportar, em 1885, numa expedição malacológica aos mares dos Açores. “Está tudo aqui, na representação o mais fiel possível”. A expedição científica, promovida pela Sociedade de Geografia de Lisboa, nunca se chegou a realizar. Mas nesta exposição, podemos ver o que Arruda Furtado e a sua mulher Adelina, casados nesse mesmo ano, pretendiam levar consigo. A lista inclui instrumentos científicos, livros, peças de vestuário (como um fato de linho branco), calçado adequado ao trabalho de campo, chapéus de palha, leques e material de desenho.

 

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A segunda sala da exposição mostra a variedade de interesses no trabalho do naturalista e a terceira faz uma síntese em redor de duas questões: a teoria da evolução e a insularidade. É aqui que está o terceiro elemento a não perder: os desenhos para divulgação da Ciência ao público. Com o tempo, Francisco Arruda Furtado foi apostando na metodologia científica e assim se distinguiu dos outros amadores locais, tendo sido convidado por José Vicente Barbosa do Bocage para trabalhar na Secção Zoológica do Museu Nacional de Lisboa.

Depois de uma vida naturalista cheia, morreu a 21 de Junho de 1887 nos Açores, vítima de uma doença nas vias respiratórias. Até Junho, a folha de desenho da lula e as caixas de lata e de charutos ficarão expostas, para nos lembrar que essa vida naturalista é possível.

[divider type=”thin”]Para saber mais sobre Francisco Arruda Furtado, visite o projecto online dedicado ao seu espólio.

E aqui pode ver mais detalhes sobre a exposição.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.