A história de uma fotografia com milhares de aves

Em meados de Fevereiro, Armando Caldas, fotógrafo amador, captou em imagens os bailados de bandos de milhares de aves nas Lezírias do Tejo. Agora conta-nos a história de um momento que lhe ficará para sempre na memória.

 

O despertador tocou às 6h45 da manhã e por volta das oito já me encontrava nas Lezírias. Nesse dia não madruguei demasiado e arrisquei a perder a melhor luz da manhã para fotografar. O objectivo do passeio era fazer aquilo que mais prazer me dá, estar na Natureza e “roubar-lhe” pedaços de beleza, mas também contagiar a namorada com essa paixão… sem que ela se apercebesse logo dos sacrifícios e esforços que se impõem a quem quer tirar o máximo partido dum dia no campo!

Não foi para mim surpresa, pela experiência de anos anteriores, pouco depois de entrar pelo portão do Cardal logo a seguir à ponte de Vila Franca de Xira, observar a elevada concentração de milherangos (ou maçaricos-de-bico-direito) que se alimentavam nas águas que inundavam os campos.

 

Fotografia: Armando Caldas
Fotografia: Armando Caldas

 

Dada a distância, umas dezenas de metros da estrada, a fotografia das aves parecia estar fora de questão para alguém que como eu gosta sempre de chegar mais perto. Por isso parei o carro e fiquei a observar. Enquanto olhava, estimava que seriam umas centenas. Viam-se bastantes mas ouviam-se poucas já que o vento forte abafava os sons.
Um ou outro carro ia passando na estrada de terra, alguns abrandavam e ficavam a olhar ou mesmo paravam. Mas as aves mantinham-se. Nem o grande tractor que mais atrás limpava uma vala, rodeado de garças-boieiras que procuravam as minhocas postas a descoberto, conseguiu fazer levantar as aves com o seu ruidoso motor.
Ao fim de uma meia hora de observação, uma águia sapeira fez levantar um grupo. Talvez mais de 100 ou 200.

Mas o grande espectáculo começou quando um carro se aproximou da estrada vindo de uma outra perpendicular. Afinal não eram centenas mas sim milhares e começaram a surgir de todos os lados. Formaram-se uns quatro ou cinco bandos gigantes que pareciam nuvens de mosquitos. Começaram a fazer bailados no céu, em voos aparentemente descoordenados aos quais o vento não seria alheio.

 

Fotografia: Armando Caldas
Fotografia: Armando Caldas

 

Cada vez que um bando mudava de direcção a cor mudava do branco para o negro, do negro para o branco. Pelo meio notava-se o laranja dos indivíduos que já haviam mudado para a plumagem nupcial. Por momentos baixavam para perto da água e em seguida decidiam levantar parecendo ondas do mar que se erguiam como tsunamis e retomavam sinuosas rotas pelo céu, indo e vindo…

Rapidamente percebi que com uma tele-objectiva de 400 mm não poderia captar a monumentalidade do momento. Na foto que melhor resultou, captei uma pequena parte do bando logo após levantar da água e explodir em todas as direcções. Em vão, substitui a tele-objectiva por uma grande-angular para tentar filmar o bando com o movimento e a amplitude de horizonte necessária. Quando o equipamento estava pronto as aves já haviam pousado!

Ficou-me a frustração de não captar a grandiosidade do momento… mas também a recordação de um dos mais belos momentos que presenciei na Natureza.

 

Sobre as Lezírias:

As lezírias da Ponta da Erva, tão perto de Lisboa (em Vila Franca de Xira), são um dos locais de excelência para desfrutar da Natureza no nosso país. Quando lá vou sei sempre que observo aves em abundância, mesmo que por vezes a fotografia não se proporcione. Fazem parte do complexo do estuário do Tejo, na sua margem esquerda, e são formadas por extensões planas imensas onde a água, conduzida por canais e controlada por diques, irriga arrozais e é um elemento sempre presente. Por aqui se cria o gado Bravo e por vezes somos surpreendidos pela imagem de um campino montado no seu cavalo Lusitano, com a capela da padroeira, a Senhora de Alcamé, em pano de fundo.
O habitat é propício a aves, desde limícolas que se alimentam em lamas e limos, pernaltas que se alimentam de anfíbios e do abundante invasor que é o lagostim-vermelho-do-Louisiana, até às rapinas diurnas e nocturnas que se alimentam de roedores, ou à águia-pesqueira que ao Tejo ali ao lado vai buscar a tainha e no alto de um poste eléctrico se banqueteia.

Nas extensas rectas das lezírias, ladeadas de cercas de arame farpado que guardam o gado, é comum observar pousados nos postes os peneireiros, búteos e águias-sapeiras e ver atravessar a estrada uma família de saca-rabos, uma raposa ou até mesmo lontras. De noite podem ver-se nesses postes, abundantes corujas-das-torres e com menos abundância a coruja-do-nabal ou o bufo-pequeno. Com sorte um texugo ou uma gineta atravessarão a estrada, parando uns momentos com os olhos brilhantes da luz dos faróis a olhar para o intruso.

O estuário do Tejo é talvez a mais importante zona húmida do país e encontra-se localizado muito próximo das rotas migratórias de aves que aproveitam o estreito de Gibraltar como melhor caminho entre continentes. Obedecendo à sazonalidade migratória é comum em datas determinadas do ano aqui se encontrarem grandes agrupamentos de aves viajantes que pousam por dias ou mesmo semanas para descansar e se alimentar. Aqui ganham energia para prosseguir a viagem de milhares de quilómetros que as vão levar para os locais que lhes proporcionam melhores condições de vida de acordo com o período de vida que se segue: a procriação ou a invernação. Nesta época do ano vêm de África e dirigem-se para Norte e Nordeste da Eurásia em busca das condições que lhes permitam a reprodução.

[divider type=”thin”]Sobre Armando Caldas:

Tem 47 anos, vive em Mafra e é licenciado em Engenharia Zootécnica, ainda que actualmente não exerça a profissão.

Trouxe da adolescência duas paixões: a Natureza e a fotografia. Desde 2008, devido a circunstâncias da vida, começou a ter tempo para se dedicar à fotografia de Natureza. E foi justamente com as aves que se iniciou. Estas são, sem dúvida, os seus modelos preferidos mas diz ser um generalista, fotografando desde insectos a répteis e plantas.
É o autor do “Guia fotográfico – Anfíbios de Portugal” editado pela Quercus e para breve surgirá um guia fotográfico para os répteis de Portugal.
Já deu palestras, foi formador em workshops de fotografia de Natureza, guiou passeios e tem fotografias publicadas em diversas publicações portuguesas e estrangeiras e em vários sites de Natureza na internet. É também o fundador do grupo do Facebook “Aves de Portugal Continental”, que administra em conjunto com José Frade, e que junta mais de 8300 amantes de aves.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.