Milhafre-real. Foto: Vnyyy/Wiki Commons

Desde Dezembro, projecto europeu detectou 7 milhafres-reais mortos no Alentejo

Os milhafres foram encontradas com a ajuda de emissores GPS que tinham sido colocados em três destas aves, no âmbito do projecto LIFE Eurokites.

O projecto LIFE Eurokite é co-financiado por fundos comunitários e tem como objectivo “identificar os factores de mortalidade” em várias espécies do centro e leste da Europa, explicou à Wilder Alfonso Godino, que faz parte da equipa. Além do milhafre-real, também estão incluídos a águia-imperial-oriental, o falcão sacre e a águia-rabalva.

As marcações com GPS, que começaram no ano passado, estão a ser feitas em 12 países – incluindo Espanha, França, Alemanha, Holanda, Itália e República Checa. Portugal não participa, mas sendo um dos destinos de Inverno dos milhafres-reais – que são aves migradoras – está incluído nas acções de monitorização e identificação de ameaças e mortalidade. Aqui se fazem também contagens anuais da população invernante.

Quanto aos milhafres encontrados sem vida, o primeiro caso aconteceu no concelho de Castro Verde, no início de Dezembro, em que as autoridades detectaram sinais de envenenamento e há suspeitas de crime. Além de um primeiro milhafre detectado graças ao emissor GPS com que tinha sido equipado – o aparelho deu o alerta – foram encontrados outros quatro igualmente mortos, nas imediações.

Foto: A. Godino / AMUS-LIFE EUROKITE

As aves foram enviadas para laboratórios da rede do Programa Antídoto. As necropsias foram realizadas pelo Hospital Veterinário da Universidade de Évora e pelo RIAS-Centro de Recuperação e Investigação de Animais Selvagens da Ria Formosa. Já a Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa vai confirmar ou não a presença de veneno.

Entretanto, no início de Janeiro, foram encontrados mais dois milhafres-reais mortos – ambos com emissores GPS do LIFE Eurokite, os dois em localidades diferentes no Alentejo. Para já, são desconhecidas as causas da morte, explicou Alfonso Godino, ligado à AMUS-Acción por el Mundo Salvaje, uma organização não governamental de ambiente (ONGA) parceira do projecto. Ainda assim, este responsável considera que “a situação é preocupante”.

De onde vieram?

As aves encontradas mortas tinham sido marcadas com emissores na Alemanha e na República Checa, dois países europeus onde os milhafres-reais se reproduzem.

Cerca de 95% da população mundial desta espécie, aliás, reproduz-se na União Europeia. “A ideia, tal como está a ser proposta no LIFE Eurokite, é muito ambiciosa, pois em poucas ocasiões na Europa um projeto teve como objectivo conhecer e minimizar as ameaças de uma espécie na totalidade da sua área de distribuição mundial”, acredita Alfonso Godino. “E no caso do milhafre-real, ainda está a ocupar a larga maioria dos países da Europa.”

Apesar da situação estável e mesmo de crescimento nalguns países, os números estão em declínio noutros locais, em especial na Europa do Sul. Em Espanha, por exemplo, há cada vez menos milhafres-reais a passar o Inverno, e a situação parece ser semelhante em Portugal.

Foto: Hansueli Krapf/Wiki Commons

“Acredita-se que, devido ao aquecimento global, algumas populações de milhafre-real já não se deslocam tanto para sul para invernar, e portanto esta poderá ser a causa desse declínio das populações invernantes.”

Mas o problema não se faz sentir apenas nas populações que passam os meses mais frios na Península Ibérica. As populações reprodutoras de milhafre-real no sul da Europa também “estão a ter um grande declínio”, nota o mesmo responsável.

Reforço de populações em Espanha

Esse é o caso de Espanha, onde vive a terceira maior população desta espécie, apenas abaixo da Alemanha e da França. No âmbito do LIFE Eurokite, foram já detectados sete milhafres-reais mortos com emissor GPS, no Noroeste do país. “E estamos só no primeiro ano do projecto”, avisa.

Em regiões como a Extremadura e Aragão, estima-se que “o declínio [de casais reprodutores] foi de 30% em apenas duas décadas, entre 1994 e 2014.” E por isso, o LIFE Eurokite prevê fazer um reforço de populações reprodutoras de milhafre-real no sudoeste do território espanhol.

Quanto às possíveis causas para esta situação, um outro projecto em curso na região de Aragão, norte de Espanha, já identificou algumas ameaças: “Veneno, electrocussão com linhas eléctricas, colisão com aerogeradores de parques eólicos”. Neste último ano, há também registo de “muitos milhafres abatidos a tiro”, além de “ameaças menores como atropelamento nas estradas e abate de ninhos, entre outras”.

O que se sabe em Portugal

No que respeita à nidificação de milhafres-reais em território português, “o principal ‘handicap’ é a falta de informação”, admite Alfonso Godino, que adianta que as únicas populações reprodutoras estão principalmente distribuídas no Nordeste do país. Assim, acredita-se que “as ameaças sobre a população reprodutora são muito mais locais [do que em Espanha].”

Mas é possível perceber, por exemplo, que “o veneno parece estar presente ao longo de todo o país”, sublinha, recordando que também em Castro Verde já houve outras situações. Por exemplo, em 2016 foram ali envenenados 11 milhafres-reais, além de uma águia-imperial-ibérica e uma raposa, no que foi considerado “o mais grave caso de envenenamento de animais selvagens do Alentejo”.

Tal como em Espanha, electrocussões, abate a tiro ou colisão com aerogeradores também poderão estar a afectar negativamente esta espécie em território nacional.

Foto: Francesco Veronesi

Numa nota positiva, Alfonso acredita que a libertação de milhafres-reais no sudoeste espanhol poderá ter efeitos sobre as populações no lado português da fronteira. “Alguns casais poderão vir a estabelecer-se, principalmente no Alentejo, onde a população reprodutora está provavelmente já extinta ou sem possibilidade de ser viável no médio a longo prazo.”

Por outro lado, as informações que nos próximos anos vão ser obtidas através do LIFE Eurokite, devido ao grande número de aves com emissores GPS, poderão ser “uma base muito importante para identificar e reduzir as ameaças desta espécie em Portugal”, acrescenta. “Esta informação será partilhada com os nossos parceiros em Portugal, ONGAs, mas especialmente com o SEPNA (GNR) e o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, com o objectivo que seja de utilidade para a implementação de medidas que permitam reduzir essas ameaças.”

Devido ao elevado número de milhafres detectados mortos em tão pouco tempo, poderá haver também a possibilidade de se marcarem algumas aves desta espécie com emissores GPS em território português. Isto fora do LIFE Eurokite, adianta o mesmo responsável.


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Marco Nunes Correia é ilustrador científico, especializado no desenho de aves. Tem em mãos dois guias de aves selvagens e é professor de desenho e ilustração.

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Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.