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E se pudéssemos saber como era a fauna do Portugal Medieval?

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Miguel Brandão Pimenta e Paulo Caetano escreveram a quatro mãos o livro “Feras e Homens“, lançado em Novembro pela editora Bizâncio. Contaram à Wilder o porquê desta obra e o quão diferente era aquele Portugal, onde não faltavam ursos, lobos, zebros, águias e cabras-monteses.

WILDER: Porque decidiram escreveram este livro?

Miguel Brandão Pimenta: Durante o período dedicado à investigação sobre o passado do urso em Portugal, reparamos que nos documentos da Idade Média existiam muitas citações a outros animais que habitavam o nosso território, nomeadamente às aves de rapina, aos peixes do mar e de água doce e aos mamíferos marinhos. Resolvemos que seria interessante dar corpo a uma nova publicação focada nesses grupos e aproveitar a ocasião para explorar a interação entre os homens e os animais selvagens. De notar que apenas as espécies que interagiam com o homem,  ou que por qualquer motivo despertavam o seu interesse, aparecem mencionadas nos documentos medievais. São referências à caça e à pesca, à exploração comercial dos animais, à utilização lúdica das aves de rapina, entre muitas outras encontradas nos documentos da época. Daí a razão da publicação deste livro, recheado de histórias e curiosidades, que nos ajudam a perceber como se relacionava o homem com os animais silvestres. 

W: E porque escolheram este período, a Idade Média?

Miguel Brandão Pimenta: Podíamos ter escolhido uma outra época ou estender o período de estudo até à Idade Moderna (séc. XVIII), por exemplo. Mas achamos mais lógico começar por concentrar os esforços na Baixa Idade Média. Se bem que, em certas ocasiões, tivéssemos que transpor as balizas do tempo. A escolha não foi um acaso. Este é um período ainda pouco conhecido, mas promissor devido à quantidade e qualidade (relativa) da informação existente. Para além disso, quisemos incluir um conjunto de novos dados relativos ao urso não mencionados no livro “Urso-pardo em Portugal” (2017) e que dizem respeito à época escolhida. 

W: Como conseguiram reunir informação sobre as espécies? Que fontes utilizaram? 

Miguel Brandão Pimenta: Foi um trabalho de pesquisa demorado e, por vezes, complexo. De entre as muitas fontes manuscritas e impressas começámos por selecionar aquelas que consideramos as mais credíveis. A nossa preocupação era encontrar o maior número possível de referências faunísticas e, como se disse, investigar as relações de interdependência homem/animal à luz da mentalidade da época. Para isso percorremos exaustivamente os forais medievais, alguns deles ainda não estudados, as inquirições gerais do reino, as chancelarias régias, as cartas de couto, a legislação da época, os livros de viagens e as crónicas medievais. Mas não só. Visitamos diversos museus e uma boa parte dos templos românicos portugueses. E como não poderia deixar de acontecer consultamos numerosas obras no âmbito das ciências biológicas e  florestais

W: Quanto tempo demorou a ser feito?

Miguel Brandão Pimenta: Uma parte da informação coligida data do período em que procedemos à investigação da presença e extinção do urso em Portugal. Alguns dos dados são até anteriores. Sendo assim, é difícil avaliar o tempo que o livro demorou a ser feito. Mas, sem dúvida, que os últimos três ou quatro anos foram os mais intensos porque à recolha da informação juntaram-se muitos outros aspectos fundamentais como a organização do livro, a redacção dos textos, as revisões, a escolha das imagens…Procuramos tanto quanto possível fazer um livro dirigido ao público em geral, escrito de uma maneira simples, acessível, sem esquecer, no entanto, o necessário rigor científico. 

W: Resumidamente, quão diferente era Portugal nessa época, em relação ao que é hoje? Quais as principais diferenças? 

Miguel Brandão Pimenta: Ao contrário do que é suposto, na Baixa Idade Média, o território não era um continuum florestal. O território português encontrava-se transformado devido, sobretudo, ao desbravamento das terras e à pastorícia – com o corte em massa do arvoredo. A madeira das árvores servia para tudo: para a construção naval, a construção civil, para o fabrico de instrumentos agrícolas, produção de sabão e vidro, para fertilizante e como combustível. Sem lenha não havia pão, alimentos cozinhados, calor e conforto. É claro que ,apesar das alterações que aconteceram, muitas das grandes manchas de floresta permaneceram mais ou menos intactas – sobretudo no norte e no centro de Portugal. Exemplo disso é o bosque de “Meijom Frio”, uma mancha de floresta que se estendia entre o castelo da Feira e as margens do rio Vouga, habitada pelo urso, o veado e o corço e que teria mais de vinte quilómetros lineares. No entanto, se quisermos caracterizar sumariamente o país, podemos dizer que o território português correspondia sensivelmente a um extenso mosaico de florestas naturais, charnecas, pântanos e áreas de cultivo.

W: Que espécies mais aparecem nos registos que encontraram dessa época? Quais os protagonistas naturais?

Paulo Caetano: O lobo é das espécies que mais surge nos registos históricos. E isso explica-se pela sua abundância de norte a sul do país, mas também pela permanente situação de conflito com o homem, por causa dos prejuízos no gado. Mais do que isso, na Baixa Idade Média, a floresta era um espaço imenso e desconhecido, escuro e perigoso, povoado por seres terríveis. Por lobos que se juntavam em alcateia e aterrorizavam os paisanos, pelos malefícios dos lobisomens e das peeiras ou fadas dos lobos. Esta dupla dimensão do lobo, o animal real e mitológico, deu-lhe essa visibilidade no registo antigo. Mas temos referências e histórias de muitos outros animais: o misterioso zebro, o imponente urso-pardo, o sempre presente javali, as fugidias cabras monteses… E, claro, as grandes rapinas que fascinavam a nobreza e a corte e que eram usadas na caça de altanaria e na cetraria, tudo muito regulamentado e hierarquizado. E fomos encontrando referências muito interessantes relativas à presença ou ao comportamento de linces, lontras, martas, abetardas, esturjões e caimões, entre vários outros exemplos.


W: Na Idade Média, quais eram as relações predominantes entre as pessoas e a vida selvagem? Que sentimentos existiam em relação ao bravio?

Paulo Caetano: Nessa época, os animais selvagens eram encarados como algo de utilitário. Como algo que podia ser comido, cuja pele era útil para vestir ou calçar, cujos ossos, cornos ou hastes podiam dar origem a adornos e a peças decorativas. Mas também eram vistos como competidores. Os lobos que matavam gado, os ursos que assaltam colmeias, os veados e javalis que fossavam nos campos cultivados, as raposas que assaltavam galinheiros, os coelhos e lebres que invadiam hortas, as pequenas aves que comiam frutos dos pomares… Quase toda a fauna selvagem, para a plebe, representava um custo quando estava viva e era um importante aporte de proteína depois de morta. Para a nobreza, a fauna silvestre tinha um encanto adicional: podia ser caçada. Ou seja, perseguir e caçar animais silvestres era o seu passatempo favorito, era um pretexto para deambular pelo campo e para conviver. E também servia como treino para a guerra, quando se enfrentavam animais de grande porte, como os ursos, os javalis ou os veados.


W: Identificaram preocupações com a conservação naturalista de algumas espécies ou com a necessidade de as estudar?

Paulo Caetano: Creio que a única preocupação com a conservação, se podemos chamar-lhes assim neste período histórico, vinha da corte e da nobreza. Como expliquei, a caça era uma das principais atividades das classes elevadas, em particular nos tempos de paz ou quando a guerra acalmava. Era a forma que a corte tinha de se desenfadar. Por isso, uma grande parte do território português estava coutado e a plebe estava proibida de caçar. Desta forma conseguiam manter efetivos populacionais para as suas montarias. No que se refere às aves de rapina, vivia-se uma situação idêntica. A pilhagem de ninhos era altamente regulamentada e restrita, porque as crias eram essenciais para manter o fluxo de futuros animais caçadores. Apesar destas restrições, com a intensificação da caça e do arroteamento dos campos, as espécies silvestres viram a sua distribuição reduzir-se na Idade Média. O urso, por exemplo, desapareceu no sul e no litoral durante este período. 


W: O que mais vos surpreendeu em todo o processo de escrita deste livro?

Paulo Caetano: O que mais nos surpreendeu foram as pequenas histórias que encontrámos. Os combates corpo a corpo com o urso, protagonizados por importantes figuras históricas, como o rei D. Dinis. A existência, já nesta época, de baleares que se dedicavam à caça de mamíferos marinhos que caçavam, chamando-lhes peixes e, por vezes, sereias. A pesca de gigantescos esturjões no Tejo, infelizmente extintos em Portugal na atualidade. Também o desaparecimento do mítico zebro, que era uma peça de caça muito apreciada…


FERAS E HOMENS – A FAUNA NO PORTUGAL MEDIEVAL

Por Miguel Brandão Pimenta e Paulo Caetano

Editora: Bizâncio

Data de publicação: Novembro de 2022

Número de páginas: 320

Preço: 18,50 euros

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.