abutre em voo
Abutre-preto. Foto: Artemy Voikhansky/Wiki Commons

Este ano há 10 crias de abutre-preto em Portugal

Criticamente Em Perigo e confinado a três núcleos reprodutores em Portugal, o abutre-preto continua a dar provas do seu regresso. Conservacionistas do Alentejo, Douro Internacional e Tejo Internacional contam como correu a época reprodutora de 2018.

 

Durante 40 anos não nasceram crias de abutre-preto (Aegypius monachus) em Portugal. A perda de habitat, envenenamento, colisão e electrocussão em linhas eléctricas e diminuição de alimento disponível ditaram esta ausência, dos anos 1970 a 2010.

Nestes oito anos, o regresso da maior ave de rapina da Europa ao nosso país tem sido seguido de perto, e apoiado, por dezenas de conservacionistas de várias instituições.

 

Abutre-preto (em primeiro plano). Foto: PJeganathan/Wiki Commons

 

Este ano, na época de reprodução que se estende de Janeiro a início de Setembro, nidificaram em Portugal 24 casais – 15 no Tejo Internacional, oito no Baixo Alentejo e um no Douro Internacional – e hoje há 10 crias que sobreviveram.

Por estes dias, com cerca de cinco meses, testam asas e ensaiam os primeiros voos.

A maior colónia portuguesa fica no Tejo Internacional. Aqui nidificaram este ano 15 casais, segundo Carlos Pacheco, biólogo que acompanha a evolução desta espécie há vários anos. Destes 15 casais, 11 fizeram postura, resultando num total de sete crias vivas. Estes dados foram recolhidos graças ao trabalho de campo de três pessoas, apoiadas por vigilantes da natureza: Otília Urbano, do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), Carlos Pacheco e Sérgio Saldanha, ex-funcionário do mesmo instituto.

“A evolução populacional mantém-se estável em relação a anos anteriores”, disse hoje Carlos Pacheco à Wilder.

Das sete crias vivas, apenas cinco estão a voar. Duas estão aos cuidados do CERAS – Centro de Estudos e Recuperação de Animais Selvagens, gerido pelo núcleo de Castelo Branco da Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza. “Num dos casos deu-se a derrocada do ninho, depois de se ter partido um ramo da árvore onde estava instalado. A outra cria foi recolhida porque, aquando da sua anilhagem, nos apercebemos que estava muito debilitada e magra”, explicou o biólogo. Mas tanto uma como a outra são recuperáveis.

As cinco crias que já estão a voar foram anilhadas e marcadas com emissor GPS/GSM; as duas que estão no CERAS serão anilhadas antes de serem devolvidas à natureza, acrescentou.

Apesar de ser o maior núcleo reprodutor de abutre-preto do país, o Tejo Internacional não está livre de problemas para a espécie. Um deles é a qualidade das árvores onde estão os ninhos. “A qualidade é má. Depois da Campanha do Trigo (nos anos 30 do século XX), não sobrou muito montado e as azinheiras que existem não têm um porte grande. Por isso, a queda dos ninhos é um problema recorrente”, disse Carlos Pacheco.

Para tentar solucionar o problema, desde 2010 têm sido instalados cerca de 10 plataformas artificiais e, segundo o biólogo, para o ano estão previstas mais algumas.

Os abutres-pretos do Tejo Internacional têm de enfrentar ainda a perturbação humana. “Este ano houve quatro casais que ocuparam o ninho mas não fizeram postura. Acredito que a perturbação pode ter contribuído para isso em alguns deles, a par de uma Primavera muito dura, com muita chuva e trovoadas em Maio.”

“Há casos em que os abutres-pretos são acusados de causar danos quando, na verdade, esses danos foram causados por outros animais, como os cães assilvestrados. Em algumas zonas tem havido mesmo perturbação dos locais onde há ninhos de abutre-preto, em época de reprodução.”

Estas aves ameaçadas enfrentam também problemas transversais ao resto do país, como a disponibilidade de alimento e o envenenamento ilegal.

 

Expectativas superadas no Baixo Alentejo

Mais a Sul, no Baixo Alentejo, encontramos a segunda maior colónia de abutre-preto de Portugal. Fica na Herdade da Contenda, propriedade da Câmara Municipal de Moura com 5.300 hectares. Este ano nidificaram aqui oito casais, um aumento em relação aos dois de 2015, aos quatro de 2016 e aos três de 2017.

“Temos sempre a expectativa de que o número de casais vá aumentando. Este ano, as nossas expectativas foram superadas”, contou hoje à Wilder Eduardo Santos, responsável da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), entidade que trabalha há vários anos para dar à espécie as condições necessárias para sobreviver.

Dos oito casais de abutres, cinco ocuparam ninhos artificiais, instalados na Herdade em 2012, e três ocuparam ninhos naturais, segundo a monitorização feita pela LPN em colaboração com a Herdade da Contenda e com o acompanhamento do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).

Ainda assim, só quatro dos oito casais acabaram por fazer posturas. “As condições meteorológicas não foram as melhores. O Inverno foi muito longo e tardio e a Primavera muito chuvosa. Isso não ajudou”, explicou.

 

Abutre-preto Murtigão. Foto: LPN

 

A época reprodutora dos abutres-pretos começa entre Janeiro e Fevereiro. As crias nascem a partir de Abril e começam a voar entre Agosto e Setembro.

Em 2015 nasceu a primeira cria no Alentejo, na Contenda, em mais de 40 anos. Desde então, tem havido uma cria por ano nesta nova colónia.

Este ano sobreviveram duas crias, dois machos, que já foram anilhadas em Julho. Uma delas – que recebeu o nome de Murtigão, nome do curso de água mais importante que atravessa a Herdade da Contenda – foi marcada também com um emissor GPS/GSM, cedido pela Vulture Conservation Foundation no âmbito de um projecto para conhecer melhor a ecologia, os movimentos e a mortalidade dos abutres na Europa.

A LPN espera que este emissor “forneça informação útil para a conservação da espécie. E isso já aconteceu. Por exemplo já foi possível confirmar que as crias iniciaram os seus primeiros voos na zona envolvente ao ninho”, disse Eduardo Santos.

 

Momentos de nervos no Douro Internacional

Também a cria abutre-preto que nasceu no Douro Internacional já está a fazer os seus primeiros voos. É a única cria do único casal nidificante nesta região. E é um casal muito especial e um caso raro.

“Normalmente, os abutres-pretos formam colónias perto de outras já existentes. Mas este casal nidifica, todos os anos desde 2012, no Douro Internacional, isolado e a cerca de 100 quilómetros da colónia mais próxima”, disse à Wilder Joaquim Teodósio, coordenador do Departamento Terrestre da Spea. “Não se conhece outra situação destas.”

 

um abutre-preto a voar
Abutre-preto. Foto: Juan Lacruz/Wiki Commons

 

Mas eram grandes os receios de que este ano o casal não regressasse ao ninho. No Verão passado, um incêndio no Parque Natural do Douro Internacional atingiu o ninho deste casal de abutre-preto e causou a morte da cria. “Tentámos evitar que o casal abandonasse a região” este ano, explicou Joaquim Teodósio. Durante o Inverno, a equipa – da qual também fazem parte elementos da associação Palombar e da Associação Transumância e Natureza (ATN) – reforçou o alimento nos campos de alimentação suplementar para abutres e instalou dois novos campos de alimentação perto da zona onde os abutres tinham nidificado em anos anteriores.

Em Novembro, o casal chegou às arribas do Douro. Mas o seu ninho já tinha ardido e, “numa região ainda debilitada pelos efeitos do fogo, não sobravam muitas opções, pois a maior parte das árvores mais robustas tinham ardido”, escreve a Spea em comunicado.

O casal decidiu fazer ninho num zimbro parcialmente ardido, o que levantou dúvidas sobre se a árvore aguentaria o peso do ninho, do casal e de uma eventual cria. Mas em Fevereiro o casal pôs um ovo. E em Março, nasceu uma cria, que esteve sob a vigilância constante e discreta de elementos do ICNF com apoio do Parque Natural de Arribes del Duero, do outro lado da fronteira.

Com o mau tempo da Primavera, “as dúvidas quanto à resistência da árvore iam aumentando”, já que o ninho estava muito instável. “Depois de consultar especialistas e acompanhar a situação durante várias semanas, a equipa do ICNF decidiu intervir. A árvore estava bastante fragilizada e por isso teve de ser escorada e presa com uma cinta para a impedir de cair”, escreve a Spea.

Mas, apesar de os progenitores se terem mantido afastados do ninho e da cria – na altura com seis semanas de vida – durante um dia e meio, acabaram por regressar e continuar a alimentá-la. Foi um “alívio colectivo”.

Hoje, a cria está “forte e saudável, pronta a fazer-se à vida”. “Ver esta cria crescer e fazer os primeiros voos é importante pela história deste casal, e pelo que passaram, mas também pelo que representa para a espécie, porque nos dá esperança que possamos vir a ter um novo núcleo de abutres-pretos no nordeste de Portugal”, disse Joaquim Teodósio.

Agora, os conservacionistas no terreno vão trabalhar para “reforçar o ninho e manter a deposição de alimento nos campos de alimentação”, adiantou o responsável.

 

Futuro da espécie

Em oito anos, a população nidificante de abutre-preto em Portugal passou de dois a três casais para 24. Eduardo Santos explica que parte deste aumento se deve à situação de expansão que se verifica em Espanha. “Devido à nossa situação geográfica, estando próximos de Espanha, beneficiamos do aumento das populações no país vizinho.” Neste momento haverá cerca de 2.000 casais de abutre-preto em Espanha.

Mas há mais explicações. “As várias acções de conservação também tiveram um papel importante, desde os campos de alimentação no Tejo Internacional e as medidas para as aves de rapina na região que beneficiaram o abutre-preto, ao combate ao envenenamento ilegal e aos ninhos artificiais instalados no Alentejo”.

 

Fêmea de abutre-preto. Foto: Vulture Conservation Foundation

 

Ainda assim, acrescenta, “falta fazer muito e, em muitos aspectos, continuamos atrasados”. Na sua opinião é preciso apostar ainda mais no combate aos venenos ilegais e é necessário o Governo português dizer não ao medicamento para uso veterinário Diclofenaco – que tem impactos graves na saúde dos abutres-pretos e de outras espécies necrófagas.

Além disso, o Plano Nacional para a Conservação das Aves Necrófagas – que inclui o abutre-preto – “continua na gaveta desde 2015”. “Seria importante que este documento fosse publicado e implementado, uma vez que está pronto e já foi discutido”, notou Eduardo Santos.

Na sua opinião, este Plano Nacional traria “coordenação e eficácia à conservação” destas aves.

Joaquim Teodósio partilha a mesma opinião. “Seria importante para fazermos conservação de forma mais efectiva e eficaz. Seria um bom reforço para espécies bastante ameaçadas.”

Com ou sem plano nacional, as crias que nasceram este ano em Portugal ainda continuarão protegidas pelos seus progenitores por mais algum tempo. “Já começaram a voar mas ainda vão ao ninho todos os dias. É lá que passam a noite e aprendem com os pais a procurar alimento”, explicou Eduardo Santos.

Nos próximos meses vão dispersar. “Há aves que vão para longe, outras ficam pela zona. Depende muito de cada indivíduo e dos recursos disponíveis de cada região.” O que se sabe é que, quando chegar a hora, regressam à “casa” onde nasceram para constituir as suas famílias.

 

[divider type=”thick”]Saiba mais.

A 1 de Setembro, um pouco por todo o mundo, assinala-se o Dia Internacional dos Abutres (International Vulture Awareness Day).

Descubra por que o abutre-preto está Criticamente Em Perigo no nosso país, segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal.

 

[divider type=”thick”]Agora é a sua vez.

Eduardo Santos, da LPN, e Gonçalo Elias, do portal Aves de Portugal, dão-lhe as dicas que o vão ajudar a observar abutres-pretos. Leia tudo aqui.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.