Grous. Foto: Andreas Trepte/Wiki Commons

Este foi um Inverno “extraordinário” para os grous em Portugal

A seca que aflige a Península Ibérica influenciou o Inverno de mais de 200.000 grous. Esta época de invernada foi “extraordinariamente excepcional”, segundo o mais recente censo, e pode ajudar a perceber como vai mudar a migração desta ave fantástica.

 

Carlos Miguel Cruz nunca contou tantos grous (Grus grus) em Portugal como neste Inverno: 12.672. “É um recorde desde meados dos anos 1980”, altura em que se registavam 2.200 grous, disse ontem à Wilder o coordenador nacional das contagens de grous invernantes, pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (Spea).

O Alentejo é única região de Portugal eleita como destino de Inverno pelos grous do Norte da Europa. Estas são aves com mais de um metro de altura, plumagem cinzento-azulada e uma mancha vermelha na cabeça. Passam o Inverno no Alentejo, em montados de azinho pouco densos, zonas alagadas, pouco declivosas e ribeiras de regime torrencial. Aqui, o alimento é mais abundante e podem preparar-se melhor para a reprodução, alguns meses mais tarde, quando regressarem a casa.

 

Foto: Kraniche Tanz/Wiki Commons

 

Todos os anos, várias entidades juntam-se para fazer contagens destas aves a fim de descobrir quantas migram para Portugal e onde estão. O censo de 2017/2018, feito em conjunto com Espanha em Dezembro e Janeiro, acaba de apresentar os resultados, chegando a um total ibérico de 201.630 grous.

“Foi uma época extraordinariamente excepcional”, comentou Carlos Miguel Cruz, naturalista que começou a contar grous em adolescente e que hoje continua a fazê-lo, “já com cabelos brancos”.

Mas o número elevado de grous é apenas uma das diferenças em relação a anos anteriores. “Esta época, os grous adoptaram novos comportamentos muito interessantes”, acrescentou.

Este Inverno registou duas novas áreas de dormida para os grous – Juromenha/Olivença e albufeira de Odivelas (concelho de Alvito) -, a juntar às cinco já conhecidas: Arronches/Campo Maior, Évora, Mourão, Moura e Campo Branco. Segundo Carlos Miguel Cruz, os grous já usavam aquelas duas áreas esporadicamente, para se alimentarem, e em bandos pequenos. Mas este Inverno passaram a usá-las de outra maneira.

A seca fez baixar o nível da água no rio Guadiana e na albufeiras de Odivelas, levando à formação de praias fluviais. “Os grous dormem com as patas dentro de água. Precisam de zonas com água de pouca profundidade, sem declives acentuados e com segurança e estabilidade. Este Inverno aquelas duas zonas deram aos grous as condições de que precisavam e que não encontraram em sítios que costumavam usar em outros anos”, explicou.

 

Grous. Foto: Tauri Parna/Wiki Commons

 

Em Portugal, estas aves não sentiram tanto os efeitos da seca como em Espanha, onde houve “áreas que este Inverno não foram usadas porque não tinham água”. “Os grous não ficaram lá e procuraram outras áreas”.

Assim, aquelas duas zonas do Alentejo tiveram outra importância para as aves. “Eram zonas que habitualmente tinham bandos pequenos, de 100 a 200 aves, e que serviam apenas de locais de alimentação esporádicos. Por exemplo, neste Inverno foram contados na albufeira de Odivelas mais de 600 a dormir diariamente.”

Os grous alteraram os seus locais de invernada consoante a água disponível. “Ainda assim, as nossas áreas mantiveram alguma humidade e água, o suficiente para receberem os grous que não ficaram em Espanha”, explicou Carlos Miguel Cruz. O censo ibérico permitiu saber também que “houve muitos mais grous no Norte de África, em Marrocos, por exemplo. Também ficaram alguns em França e na Alemanha, o que não é costume”.

Além disso, este ano os grous começaram a migrar mais cedo, de volta ao Norte da Europa. “Anteciparam a migração e foram à procura de melhores condições. Em alguns sítios anteciparam um mês a migração.” Em Portugal já será quase impossível observar grous a partir de 15 de Março.

Não se sabe ao certo quais os países de origem dos grous que passam o Inverno no Alentejo. Mas este ano, as pessoas que participaram no censo conseguiram ler duas anilhas: eram animais da Finlândia e da Estónia.

 

Grous em migração. Foto: Mindaugas Urbonas/Wiki Commons

 

A juntar-se aos números recorde e às novas áreas de invernada, Carlos Miguel Cruz viu este Inverno algo pela primeira vez. “Os grous tinham tanta fome que andavam atrás dos tractores que revolviam o solo, na preparação para as sementeiras, à procura de invertebrados que assim ficavam mais acessíveis. É um comportamento típico de aves como as garças, mas nunca tinha visto com grous”, contou.

Carlos Miguel Cruz acredita que, com as mudanças do clima, os padrões de migração dos grous se alterem. “Talvez até possam voltar a reproduzir-se em Portugal e a ficar cá todo o ano, como acontecia no século XIX no Baixo Tejo e Baixo Guadiana. Provavelmente teremos surpresas.”

Na verdade, já houve tempos em que o grou fazia ninho em Portugal. Há registo de ninhos de grou no final do século XIX no Baixo Guadiana e em Pancas, no estuário do Tejo, segundo o livro Aves de Portugal (2010). Mas há muito que a ave passou a ser apenas invernante.

Outra questão em aberto é de que forma os grous e outras aves que dependem das estepes cerealíferas vão conseguir adaptar-se às mudanças no uso dos solos. “Aves como a abetarda, uma espécie representante da nossa biodiversidade e que temos a felicidade de ter, ou como o sisão vão sofrer com a conversão dos solos de sequeiro para regadio, com o fim da rotação das culturas (pousios, trigo, cereal mais fraco) e as culturas permanentes (olivais intensivos, vinha, amendoeiras), por exemplo. O Alentejo tem um património natural muito rico, construído ao longo de milhares de anos de história genética de evolução, que se está a perder.”

O censo anual de grous invernantes é coordenado pela Spea e tem a participação de entidades como a Liga para a Protecção da Natureza (LPN) e o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Conta com o apoio da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e do Ministério da Educação.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.