Estes biólogos voltaram a ter a mesma ave nas mãos quase 12 anos depois

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Esta não é uma história inédita, mas não acontece todos os dias. São milhares as aves que passam o Inverno no Estuário do Tejo. Houve uma, um fuselo, que foi capturada duas vezes pelas redes destes anilhadores. Com quase 12 anos de intervalo.

Afonso Rocha, um dos responsáveis do Grupo de Anilhagem do Estuário do Tejo, e Ricardo Jorge Lopes, investigador do CIBIO-InBIO (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos) e curador de Aves do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, anilham aves selvagens, uma prática usada há quase 100 anos para desvendar os mistérios destes animais.

Anilhagem de aves nas Salinas do Samouco. Foto: Ricardo Jorge Lopes

Recentemente receberam uma notícia surpreendente. E entusiasmante.

Na madrugada de 12 de Setembro de 2018, nas Salinas do Samouco, o grupo de anilhagem de Afonso Rocha capturou 267 aves. Entre elas estava um fuselo (Limosa lapponica) muito especial. Era exactamente a mesma ave que tinha sido capturada numa sessão de anilhagem nocturna a 24 de Janeiro de 2006 a oito quilómetros dali, na Salina de Vale de Frades.

Fuselo. Foto: Ricardo Jorge Lopes

Nessa altura, em 2006, Afonso Rocha era ainda um aprendiz de anilhador e aquela era a sua primeira sessão de aves limícolas. Ricardo Jorge Lopes era o coordenador da sessão de anilhagem, feita no âmbito do seu trabalho a longo termo sobre a genética de outra espécie de ave limícola, o pilrito-de-peito-preto (Calidris alpina).

No entanto, passados quase 12 anos, era impossível reconhecer a ave quando a tiveram nas mãos. Só o souberam bem mais tarde, por email.

“Quando recapturamos estas aves não sabemos se têm cinco ou 20 anos, são iguais”, contou Afonso Rocha à Wilder. “Podemos desconfiar que são antigas pelo código e desgaste da anilha metálica, mas não fazemos ideia da longevidade dessa ave. A surpresa surge por email quando o Cempa – a Central Nacional de Anilhagem do ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas) – nos envia o registo dos dados de anilhagem. É nesse momento que conseguimos ligar a informação e, por vezes, deparamo-nos com registos extraordinários de longevidade ou distância percorrida.”

Fuselo em Vale de Frades. Foto: Ricardo Jorge Lopes

Segundo Ricardo Jorge Lopes, “um dos objectivos da anilhagem é obter, mais tarde ou mais cedo, pelo menos um registo da sua recaptura, que nos pode dar informação vital, quer espacial, quer temporal, sobre essa ave, e que irá aumentar o nosso conhecimento sobre essa espécie”. Por exemplo, graças à anilhagem sabemos que para esta espécie o registo mais longo é de uma ave com 33 anos e 1 mês.

Foi o que aconteceu com este fuselo, uma ave que se alimenta de invertebrados no lodo, graças ao seu bico longo, fino e curvado para cima. É um migrador de passagem e invernante. As Salinas de Vale de Frades são um dos seus refúgios preferidos. É ali, em Vale de Frades, que fica uma das áreas de repouso mais importantes para as aves do Estuário do Tejo.

Salinas de Vale de Frades. Foto: Ricardo Jorge Lopes

Este fuselo foi recapturado durante uma das sessões feitas pelo Grupo de Anilhagem do Estuário do Tejo para saber como estão a evoluir as aves que usam este estuário, um dos maiores na Europa. Durante essas sessões, os peritos fazem capturas regulares “para controlar aves com anilhas estrangeiras e marcar com anilhas coloridas espécies de aves limícolas alvo de estudos científicos”, explicou Afonso Rocha. Quase todas são limícolas, ou seja, aves que se alimentam no lodo, perto da água.

Nos últimos anos, a tecnologia usada para estudar o movimento das aves avançou muito. “Hoje existem dispositivos de seguimento de alta precisão que podem ser colocados nas aves e que nos permitem estudar os seus movimentos diários, por exemplo nas deslocações dos fuselos entre os locais de alimentação intertidais no estuário do Tejo e os locais de refúgio preferenciais quando essas zonas ficam inundadas pela subida da maré; ou por exemplo a migração dos fuselos que invernam no arquipélago dos Bijagós, na Guiné-Bissau e que todos os anos voam até ao Norte da Rússia para se reproduzirem”, explicou Afonso Rocha.

Graças a estas tecnologias, sabemos hoje mais sobre estas aves do que há quase 12 anos. “Descobrimos que algumas destas aves nidificam para além da área de distribuição conhecida para a espécie, uma descoberta que será publicada em breve. A informação gerada pela anilhagem e recolhida por estes dispositivos permite identificar as áreas vitais para as espécies e dessa forma influenciar os decisores políticos a adotar as melhores estratégias para compatibilizar o desenvolvimento económico e a conservação da biodiversidade. Infelizmente não é o que assistimos com o plano da construção do novo aeroporto no coração do Estuário do Tejo, o qual terá um impacto negativo nos milhares de aves que utilizam o estuário, incluindo os fuselos.”

Foto: Afonso Rocha

E é verdade que o Estuário do Tejo mudou bastante desde que este fuselo foi anilhado na Salina de Vale Frades. “Por um lado a qualidade da água melhorou com a maior eficiência das estações de tratamento de águas residuais ao longo da bacia do Tejo; por outro, a pressão sobre os habitats naturais é cada vez maior”, salientou o investigador.

“A requalificação das zonas ribeirinhas melhorou a qualidade de vida das populações humanas, mas também reclamou parte do habitat natural e o número avassalador de mariscadores que colhe amêijoas diariamente no estuário provocam, no seu conjunto, uma perda considerável do habitat disponível para as aves em zonas sem proteção legal mas também nas Zonas de Proteção Especial ou de Reserva Natural.”

Mas embora se verifique um declínio generalizado das espécies que ocorrem no estuário, outras apresentam uma tendência inversa. Tal é o caso do colhereiro (Platalea leucorodea), que tem cada vez mais casais nidificantes, ou os íbis-pretos (Plegadis falcinellus) que agora são aos milhares.


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Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.