Fogo teve “impacto severo” numa das áreas de caldoneira mais importantes da Serra da Estrela

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O incêndio afectou habitats refúgio de inúmeras espécies raras ou que só existem nesta área protegida, segundo José Conde, do Centro de Interpretação da Serra da Estrela (CISE). As chamas chegaram a uma das áreas de caldoneira mais importantes da serra.

Uma das áreas de mato de caldoneira (Echinospartum ibericum) mais importantes da serra da Estrela fica na Serra de Baixo. A caldoneira, espécie endémica da Península Ibérica, é um arbusto que dá flores brancas e amarelas em Junho e Julho. O aroma adocicado que exalam é agradável e intenso.

Caldoneira. Foto: Ana Júlia Pereira/FloraOn

Esta planta vive em zonas montanhosas e desenvolveu estratégias para sobreviver aos ventos fortes e frios durante o inverno.

O incêndio que já afectou mais de 10.000 hectares do Parque Natural da Serra da Estrela teve um “impacto severo sobre uma das áreas de mato de caldoneira (Echinospartum ibericum) mais importantes da serra da Estrela”, contou ontem à Wilder José Conde, do CISE.

“Este e outros habitats são refúgio de uma biodiversidade importante, incluindo várias espécies raras, ameaçadas de extinção ou até exclusivas desta área protegida.” Entre estas estão o escaravelho Monotropus lusitanicus e o grilo-de-sela Ctenodecticus lusitanicus, ambas exclusivas da serra da Estrela.

Como o incêndio ainda está em curso ainda não foi possível avaliar de forma clara a extensão dos danos ocorridos a nível do património natural.

Mas José Conde já pode afirmar que “as perdas são muito significativas”, considerando a área abrangida, num gradiente altitudinal compreendido entre os 550 e os 1.600 metros.

“O impacto em habitats naturais e semi-naturais é preocupante, em particular em áreas florestais de relevância para a conservação da natureza, nomeadamente bosques de castanheiro, azinheira e carvalho-negral, quer no vale do Zêzere quer no vale do Mondego.”

Num futuro próximo, José Conde chama a atenção para vários problemas, como uma “perda/destruição do solo muito significativa, com um expectável agravamento de processos erosivos e de desertificação”.

“Também muito grave será a contaminação dos meios aquáticos com cinzas e sedimentos resultantes da erosão, com impactos consideráveis sobre os recursos hídricos. Tal resultará numa degradação da qualidade da água e, a nível da biodiversidade, em impactos nas comunidades de organismos aquáticos, em particular de macrooinvertebrados aquáticos e peixes.”

José Conde salienta que também nestes meios a diversidade de vida selvagem é importante, destacando-se no rio Zêzere a presença de uma espécie de insecto aquático endémica, a Hydraena zezerensis.

Dois geossítios de importância internacional afectados pelas chamas

O Vale Glaciário do Zêzere – um perfeito exemplo, ao longo de 10 quilómetros, da capacidade dos glaciares para esculpir a paisagem – e as Moreias da Lagoa Seca – com quatro arcos morénicos compostos por blocos graníticos de grande dimensão formados, três deles há cerca de 30 mil anos e um há cerca de 140 mil anos – são dois geossítios de relevância internacional e os mais icónicos da Serra da Estrela. Foram afectados pelas chamas, segundo o Estrela Geopark Mundial da UNESCO.

Estes dois casos “estão entre os melhores exemplos a nível mundial de formas relacionadas com o modelado glaciário, refletindo as marcas deixadas por antigos glaciares que há milhares de anos moldaram as altitudes mais elevadas da serra da Estrela”, explicou à Wilder Fábio Loureiro, do Geopark.

No entanto, os geossítios não apresentam apenas relevância geológica; têm também valores biológicos, paisagísticos, culturais e turísticos. “A ação dos incêndios florestais representou um forte impacte na biodiversidade, onde certamente inúmeras espécies de fauna sofreram com este incêndio.”

Segundo Fábio Loureiro, o incêndio consumiu na sua totalidade o coberto vegetal na Lagoa Seca e parcialmente na margem direita do Vale glaciário do Zêzere. “Foram afectadas não só as espécies introduzidas pelos serviços florestais mas também outras de carácter autóctone como carvalhos (alvarinho e negral).”

“Aliada a esta perda, inclui-se o valor paisagístico destes locais que representavam alguns dos pontos mais icónicos da serra da Estrela.”

Fuinha vítima dos incêndios deu entrada em centro de recuperação de animais selvagens

O CERVAS – Centro de Ecologia Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens, instalado em Gouveia, já recebeu um animal vítima deste incêndio.

Trata-se de uma fuinha (Martes foina) recolhida em Manteigas e entregue no CERVAS pelos vigilantes da Natureza do Parque Natural da Serra da Estrela. “Este animal estava muito debilitado e apresentava queimaduras nas patas, tendo morrido logo após o ingresso no centro”, contou à Wilder Ricardo Brandão, director veterinário deste centro.

Fuinha. Foto: Stanislaw Szydło/WikiCommons

Segundo este especialista, “há poucos ingressos neste tipo de situações”. “A maior parte dos animais morre nas áreas ardidas e/ou não é encontrada a tempo.”

Em 2017, quando arderam 21.011 hectares do Parque Natural da Serra da Estrela, ingressaram no CERVAS oito animais “devido a causas relacionadas directa e indirectamente com o incêndio. Este valor representou cerca de 2% do total de ingressos vivos desse ano”.

Neste momento, não se sabe se as instalações do CERVAS, onde estão 93 animais selvagens em recuperação, estão em segurança. “Tendo em conta a evolução do incêndio desde o seu início não é possível assegurar que esta ou qualquer outra estrutura que esteja dentro da área do Parque Natural da Serra da Estrela, como é o caso do CERVAS, esteja totalmente segura. Ainda assim, neste momento a frente do incêndio mais próxima está a avançar numa direcção contrária”, explicou Ricardo Brandão.

Serra da Estrela. Foto: Alberto Mesquita/WikiCommons (arquivo)

Segundo dados do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), nos últimos 10 anos arderam mais de 32.600 hectares no Parque Natural da Serra da Estrela. Os piores anos foram 2017 (com 21.011 hectares ardidos) e 2005 (com 10.538 hectares).

No ano passado, em 2021, arderam 363 hectares.


Agora é a sua vez.

Se encontrar um animal selvagem ferido, deve entregá-lo o mais rapidamente possível às autoridades (SEPNA/GNR e áreas protegidas) ou directamente no centro de recuperação mais próximo, segundo Ricardo Brandão.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.