Gato-bravo captado por foto-armadilhagem. Foto: Gonçalo Matias

Gato-bravo em Montesinho estará a viver uma extinção silenciosa, alertam investigadores

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Apenas nove gatos-bravos foram encontrados em Montesinho, bastião da espécie em Portugal, revela estudo sobre a densidade populacional naquela área protegida. Esta população estará a sofrer uma extinção silenciosa, alertam os investigadores.

O gato-bravo (Felis silvestris) é um dos mamíferos mais raros de Portugal.

Gato-bravo captado por foto-armadilhagem no âmbito deste estudo. Foto: Gonçalo Matias

Gonçalo Matias descobriu quão preocupante é a situação deste felino ainda durante a sua licenciatura em Biologia. Depois disso, diz à Wilder, “decidi que queria tentar contribuir para a sua conservação”.

O gato-bravo fascina este investigador do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais – cE3cna Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Ciências Lisboa) “por ser uma espécie pouco conhecida no geral e por ser possível descobrir mais sobre alguns dos seus aspetos ecológicos”.

“Essa falta de conhecimento faz com que seja mais interessante para mim estudá-lo. E o facto de estar classificado como uma espécie Vulnerável pelo Livro Vermelho dos Vertebrado de Portugal Continental, impulsiona-me a querer contribuir para a sua conservação e melhorar as suas populações em Portugal.”

Gonçalo Matias e os seus orientadores decidiram que “seria um bom desafio tentarmos estimar pela primeira vez a densidade de uma população de gato-bravo em Portugal”. Isto porque, explica, “a densidade é um dos parâmetros mais importantes na conservação das espécies e na criação de medidas de conservação/gestão”.

Escolheram o Parque Natural de Montesinho, área protegida no Nordeste Transmontano (distrito de Bragança) com 75.000 hectares e onde vivem cerca de 9.000 pessoas. É o bastião da espécie em Portugal e faz parte da metapopulação mais ameaçada da Europa, a ibérica.

Parque Natural de Montesinho. Foto: Gonçalo Matias

O trabalho de campo aconteceu entre Outubro de 2019 e Março de 2020, numa área com 423 quilómetros quadrados. Os investigadores quiseram aproveitar a época de reprodução deste felino, de Janeiro a Março. “É nessa época do ano que os gatos-bravos, principalmente os machos, percorrem uma maior área à procura das fêmeas”, explica Gonçalo Matias. Por isso, “a sua detetabilidade pelas armadilhas fotográficas poderá aumentar”.

Em 3.477 noites de foto-armadilhagem, a partir de 34 câmaras, foram detectados um total de 24 registos de nove gatos-bravos.

Os investigadores utilizaram também estacas de madeira com atrativo (extrato de Valeriana) durante a época de reprodução (Janeiro-Março) do gato-bravo, “de modo a tentar obter amostras de pêlos dos indivíduos com o objetivo de obter uma identificação com base na genética”. Mas, “infelizmente, não foi possível obter nenhuma amostra”.

Os resultados desta investigação foram publicados num artigo da revista científica Population Ecology em Maio deste ano.

“Através deste estudo conseguimos identificar um cenário alarmante”, diz à Wilder Gonçalo Matias, o principal autor do artigo. “A espécie apresenta uma densidade significativamente reduzida, sendo que se não existirem medidas de conservação direcionadas para a mesma, esta poderá apresentar extinções a nível local.”

Segundo a equipa de investigadores – da qual fizeram parte, além de Gonçalo Matias, Luís Miguel Rosalino (também do cE3c), José Luís Rosa (do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, ICNF) e Pedro Monterroso (do CIBIO-InBIO) -, a densidade média é de 0,032 a 0,012 indivíduos por quilómetro quadrado.

Esta é uma das densidades mais baixas a nível europeu mas está dentro dos valores da Península Ibérica mediterrânica.

Gato-bravo perto de uma estaca de madeira com atrativo (extrato de Valeriana)

“Estes resultados revelaram ser relativamente baixos, mas semelhantes a outras populações ibéricas, o que seria de esperar”, comenta Gonçalo Matias. “Estávamos à espera de detetar a presença de gato-bravo, uma vez que técnicos do ICNF informaram-nos que detetavam a presença da espécie quando implementavam armadilhas fotográficas no Parque. No entanto, obtivemos um baixo número de registos comparando com outras espécies de mamíferos.”

O que está a acontecer em Montesinho

O Parque Natural de Montesinho, criado em 1979, é uma das áreas de montanha mais importantes para a fauna em Portugal. Ali há várias florestas diversas, com azinheiras, carvalhos-negrais, castanheiros e várias espécies de pinheiros; a vegetação é dominada por tojos, estevas e urzes. Esta área protegida é atravessada pelos rios Sabor e Onor e nas margens de riachos crescem freixos, salgueiros, amieiros e choupos-negros.

“Uma parte muito significativa de toda a fauna terrestre portuguesa está presente no Parque, o que indica que apresenta condições ótimas para a presença destas espécies”, diz Gonçalo Matias.

Pegada de lobo-ibérico em Montesinho. Foto: Gonçalo Matias

É um dos melhores locais para o gato-bravo, espécie que também tem registos no Parque Nacional Peneda-Gerês e no Parque Natural do Vale do Guadiana.

Montesinho também foi escolhido para este estudo por causa do trabalho que o ICNF estava a implementar, o Projeto de Prevenção Estrutural e Conservação de Habitats Naturais Protegidos e Espécies Prioritárias – HabMonte. Este “iria utilizar armadilhas fotográficas para detetar a presença das espécies de mamíferos existentes nas zonas de intervenção do projeto. Deste modo, foi possível fazer uma parceria com o ICNF para utilizar os dados recolhidos durante o projeto para realizar este estudo”, explicou o investigador. 

A principal causa de ameaça para o gato-bravo em Montesinho é a redução da sua principal presa, o coelho-bravo. “A população de coelho sofreu um declínio acentuado, a nível Ibérico, devido à doença hemorrágica viral. Por outro lado, sendo o coelho uma espécie cinegética, pode ser legalmente caçada. Esta redução drástica na disponibilidade de presas para o gato-bravo tem um efeito negativo na sobrevivência deste no Parque.”

Outra ameaça à espécie é a hibridação com o gato doméstico. “Apesar de não termos detetado nenhum gato doméstico nas armadilhas fotográficas durante o nosso estudo, juntos às aldeias dentro do Parque detetámos a presença da espécie doméstica. Uma vez que a densidade de gato-bravo é muito reduzida no Parque, os indivíduos que não conseguem reproduzir com parceiros da mesma espécie, poderão ter de procurar um parceiro na comunidade de gatos domésticos existentes no Parque, levando à hibridação.”

“Infelizmente, num futuro próximo a extinção do gato-bravo em Montesinho e a nível nacional poderá ser uma realidade”, alerta Gonçalo Matias. “Se não existirem esforços de conservação nos próximos anos, esta espécie poderá extinguir-se em Portugal.”

Segundo este investigador, antes de qualquer medida de conservação da espécie é preciso termos “um bom conhecimento da espécie, em termos de área de distribuição, bem como abundâncias/densidades das populações”.

“No caso do gato-bravo esta informação é ainda muito reduzida, sendo difícil implementar medidas específicas para a sua recuperação”.

Os registos de ocorrência da espécie são extremamente raros porque o gato-bravo tem baixas densidades e é uma espécie muito discreta. “Uma vez que não se tem certeza da área da distribuição da espécie, torna-se mais complexo efetuar estudos sobre a mesma.”

Paisagem do Parque Natural de Montesinho com nevoeiro. Foto: Gonçalo Matias

“Em primeiro lugar seria necessário obter uma área de ocorrência atual da espécie no país e depois disso tentar estimar abundâncias/densidades de modo a ser possível indicar um número aproximado de indivíduos.”

“Por outro lado, em áreas de ocorrência da espécie é necessário informar a comunidade da sua existência, bem como tentar suscetibilizar a comunidade para a esterilização ou contenção dos animais domésticos, principalmente do gato doméstico, de modo a evitar a hibridação com o gato-bravo. Por último em zonas onde se detete a ocorrência da espécie, seria necessário estudar a disponibilidade de presas (ex: coelho-bravo), de modo a perceber se a população de presa é viável ou se é necessário a reintrodução da mesma.”

Ainda que tenha os seus desafios, estes investigadores mostraram como Montesinho poderá ser uma área protegida importante para futuros esforços de conservação do gato-bravo, por ter condições para albergar uma população saudável.

Neste momento está em curso o projeto de revisão do Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental, com o objetivo de aumentar o conhecimento sobre as espécies de mamíferos no território nacional continental, incluindo o gato-bravo.

 


Saiba mais.

Conheça a história destes dois naturalistas que conseguiram um registo de gato-bravo em Montesinho.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.