abutre em voo
Abutre-preto. Foto: Artemy Voikhansky/Wiki Commons

Governo português pode fazer história na protecção de abutres e águias

Amanhã a Assembleia da República vai debater se Portugal proíbe, ou não, um medicamento veterinário fatal para abutres e águias, alguns dos quais de espécies ameaçadas.

 

Em debate estará a comercialização e uso em Portugal de medicamentos veterinários que utilizem na sua formulação o diclofenac. Este é usado como anti-inflamatório e analgésico em animais de gado.

O problema é que o diclofenac pode persistir em concentrações letais numa carcaça até sete dias depois da morte do animal. Quando abutres, águias ou outros animais necrófagos se alimentam dessa carcaça, ingerem também o diclofenac.

“Em abutres do género Gyps (como o grifo) e em algumas espécies de águia do género Aquila, a substância provoca insuficiência renal aguda que rapidamente leva à morte”, segundo um comunicado conjunto de 10 associações de conservação da natureza divulgado ontem.

Os danos causados pelo diclofenac na vida selvagem já estão provados. O caso mais conhecido é o da Índia, onde as populações de três espécies de abutres registaram reduções superiores a 97% depois de terem ingerido carcaças que tinham sido tratadas com diclofenac. Como resultado, este fármaco foi banido no subcontinente indiano em 2006. Desde então, os abutres indianos têm vindo a recuperar.

Em Portugal, são várias as espécies necrófagas que estarão ameaçadas por este fármaco, em especial o abutre-preto (Aegypius monachus), o britango (Neophron percnopterus), o grifo (Gyps fulvus), a águia-imperial-ibérica (Aquila adalberti) e a águia-real (Aquila chrysaetos).

“A maioria destas espécies tem efetivos muito reduzidos, tendo algumas delas estatutos de conservação muito desfavoráveis em Portugal e no resto do mundo. E todas elas estão protegidas por lei em Portugal e na Europa.”

Os conservacionistas lembram que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) já reconheceu a sua preocupação face à potencial utilização do diclofenac e aos riscos para a conservação das populações nacionais de aves necrófagas. “A preocupação de todas as organizações envolvidas na preservação destas espécies está evidente na proposta de Plano Nacional para a Conservação das Aves Necrófagas em Portugal, que aguarda ainda aprovação final e implementação.”

 

Riscos para animais selvagens e para os ecossistemas

Este fármaco está longe de ser uma ameaça apenas para os animais. Segundo o comunicado, em causa está também a boa saúde dos ecossistemas.

“Os abutres em particular desempenham um papel único nos nossos ecossistemas, limpando as nossas paisagens de cadáveres de animais mortos e, por isso, limitando a transmissão de doenças”, lembram os conservacionistas.

“Tendo em conta os potenciais impactos do diclofenac nestas espécies, os seus hábitos alimentares e a suas reduzidas populações, caso o diclofenac seja autorizado e utilizado em Portugal, terá um impacto potencialmente devastador nestas aves e também nos ecossistemas onde ocorrem.”

Mas se não for, Portugal poderá fazer história e liderar a Europa, proibindo um medicamento que prejudica gravemente aves protegidas e ecossistemas, sublinham ainda.

O debate será levado a São Bento por duas propostas de projeto de Lei, submetidas pelo Partido Ecologista Os Verdes (Projeto de Lei n.o 885/XIII/3.a) e pelo PAN – Pessoas, Animais e Natureza (Projeto de Lei n.o 1056/XIII/4.a).

As associações de ambiente recordam que existem alternativas seguras a essa substância e que “o tratamento dos animais domésticos é perfeitamente possível sem recorrer ao uso do diclofenac e pôr em risco os ecossistemas nacionais”.

Além disso, sublinham, “a autorização do diclofenac em Portugal para uso pecuário poderá também colocar em causa de forma irremediável o compromisso e esforço nacionais de conservação das aves necrófagas, desperdiçando uma oportunidade de o Estado Português reiterar o seu empenho relativamente aos objetivos de conservação da natureza e sustentabilidade ambiental a nível nacional e da União Europeia”.

O comunicado é assinado pela Liga para a Protecção da Natureza (LPN), Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (Spea), Associação ATNatureza, Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino, Birdlife International, Geota, Fapas, Quercus, Palombar e pela Vulture Conservation Foundation.

 

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Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.