Lince-ibérico. Foto: Programa de Conservação Ex-Situ

Há um ano, um incêndio deixou vazio o Centro Nacional de Reprodução do Lince-ibérico

Faz agora um ano que 29 linces foram retirados daquele Centro por causa do incêndio de Monchique. Na semana passada, o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) revelou as imagens da evacuação. Hoje, a maioria dos animais já terá ultrapassado esta crise.

As cinzas começaram a cair nos cercados do Centro Nacional de Reprodução do Lince-ibérico (CNRLI) às 13h30 de 8 de Agosto de 2018. 

O incêndio de Monchique, que tinha deflagrado a 3 de Agosto e queimado já 20.000 hectares, estava descontrolado. No seu caminho estavam 29 linces-ibéricos, uma espécie Em Perigo de extinção, e um centro que, desde Outubro de 2009, trabalhava para a sua conservação.

Hoje, passado um ano, Rodrigo Serra, director do CNRLI, considera que os linces já estarão de volta à normalidade. “Os linces são sobreviventes natos”, disse esta semana à Wilder. “Tirando um ou dois animais, a maioria já não mostra sinais de stress” e está adaptada.

Fresa no Centro de Reprodução do Lince Ibérico, em Silves. Foto: Joana Bourgard/Wilder (arquivo)

As principais causas de stress para os linces foram as capturas e o transporte para os três centros de reprodução espanhóis – El Acebuche (que acolheu oito animais), La Olivilla (12 animais) e Zarza de Granadilla (nove animais) – que os receberam durante quatro meses.

“As capturas são eventos de stress agudo para qualquer animal selvagem”, explica Rodrigo Serra. Além disso, o transporte e a adaptação aos novos espaços também influenciaram estes linces.

“As consequências são difíceis de analisar”, disse Rodrigo Serra, para quem esta crise poderá ter afectado o sucesso desta temporada de cria. Das 14 crias geradas no CNRLI, apenas sobreviveram oito. “Este ano tivemos uma taxa de mortalidade que não é normal em Silves”, comentou, notando que “é muito difícil perceber quais poderão ter sido os factores”. 

“Terá com certeza alguma relação com as evacuações que foram feitas, mas esperávamos até que o impacto fosse maior. Das seis fêmeas que emparelhámos, cinco não só ficaram gestantes como tiveram crias”, indicou.

Lince-ibérico, cria. Foto: Programa Ex-situ

No final, “cada animal lida com o stress à sua maneira. Há uns que ultrapassam melhor do que outros. Tirando um ou dois animais, para quem a recuperação está a custar mais, os outros estão próximos do seu estado normal, sem desvios do padrão normal de comportamento”, acrescentou.

Uma evacuação em tempo recorde

Há um ano, tudo foi feito para minorar o stress para os linces.

A 8 de Agosto passado, o ICNF revelou as imagens das capturas dos linces, precisamente um ano antes.

Os principais métodos utilizados foram a passagem do edifício parideira para dentro da jaula de transporte (que consiste em encostar a jaula ao edifício e atrair os linces com coelho, esperando que os animais tomem a iniciativa) e a caça-mariposa (com uma rede).

Apenas quatro animais tiveram de ser anestesiados com dardos, o método mais intenso.

“Esta não era uma mera evacuação”, comentou anteriormente à Wilder Rui Pombo, membro da direcção do ICNF que acompanhou a operação em Agosto de 2018. “Por mais complexa que possa ser uma evacuação de pessoas ou bens, havia ali um factor crítico que nenhum de nós controlava: o comportamento dos animais à captura. Não tínhamos a certeza do tempo que isso iria demorar.”

Foto: Programa de Conservación Ex-situ del Lince Ibérico

A operação de captura dos animais acabou por durar menos de 24 horas, das 20h00 de 7 de Agosto às 16h47 de 8 de Agosto.

No dia 7 “conseguimos capturar 23 animais em cinco horas e meia”, recorda Rodrigo Serra. “Nessa noite ninguém dormiu.” Entre os primeiros linces a serem colocados em jaulas estavam os seis juvenis (quatro fêmeas e dois machos), que na altura tinham cinco meses de idade. 

O método mais usado para capturar os linces foi o do edifício parideira. “É o método menos stressante e queríamos usá-lo enquanto tivéssemos tempo”. Assim foram capturados Drago, Juromenha, Fado e Enebro, por exemplo.

Mas houve linces que as equipas não conseguiram passar para o maneio, como o Madagáscar, a Flora, o Ermesou o Mouro. “Nestes casos, a captura implicou a anestesia, um método mais intensivo.”

A captura do último dos 29 linces aconteceu às 16h47 de dia 8 de Agosto. Cerca de uma hora depois, às 17h59, o fogo atingia os cercados.

Os animais saíram do CNRLI às 17h43, numa operação onde participaram 70 pessoas. Entre elas estiveram profissionais do ICNF, a equipa técnica do CNRLI, vigilantes da natureza, técnicos especialistas em fogo e em fauna selvagem, veterinários, o corpo de fuzileiros da Marinha, elementos da GNR, da autarquia de Lagoa e técnicos e responsáveis espanhóis.

Hoje, o CNRLI está a expandir-se

Por estes dias, muito do trabalho no CNRLI passa pelo início da fase de treino de sete crias para serem reintroduzidas na natureza, algo que se prevê acontecer em Janeiro do próximo ano.

“Neste momento faltam apenas duas crias aprender a matar a caça, altura em que se tornam independentes”, explicou Rodrigo Serra. Depois, a equipa do centro começará a preparar os animais para a liberdade, incluindo a análise das características de cada uma e o uso de técnicas para que os animais tenham receio de humanos.

Fêmea e crias no CNRLI. Foto: Joana Bourgard/Wilder (arquivo)

Entretanto, o CNRLI está a mudar, continuando as intervenções que começaram há vários meses para recuperar o espaço do incêndio.

Os maiores danos do incêndio registaram-se nos cercados do centro, disse à Wilder Rui Pombo, do ICNF. Segundo o levantamento dos danos, cerca de 50% dos cercados da ala norte tiveram “impactos muito, muito significativos”.

Além da rede dos cercados, foi preciso substituir câmaras de videovigilância, a rede eléctrica e de fibra óptica, as redes de ensombramento, as caixas parideiras e as caixas ninho e os marouços construídos para distribuir coelhos nos cercados, por exemplo.

De momento estão em fase de construção dois cercados de 2.000 metros quadrados cada um para treinar os linces para a reintrodução. “O objectivo é deixar os cercados para os animais reprodutores”, explicou Rodrigo Serra. Ambos os grupos de animais têm necessidades bem diferentes.

Os dois cercados deverão estar concluídos ainda este ano.

Esta expansão está prevista no Plano de Acção para a Conservação do Lince-ibérico em Portugal (PACLIP), a decorrer de 2015 a 2020.

Bem como a construção de três cercados, com 90 metros quadrados cada, para receber linces vindos do campo a precisar de cuidados. “Será um pólo de recuperação para animais de campo, aproveitando os conhecimentos dos técnicos do CNRLI”, acrescentou.

Já no Verão de 2015, o lince Loro – que tinha sido reintroduzido no Vale do Guadiana nesse ano – esteve em quarentena nas instalações do CNRLI, depois de ter fracturado a tíbia esquerda.

Com o evoluir do projecto de conservação do lince-ibérico em Portugal e Espanha, que já se traduz em 686 linces na natureza, “é expectável que no futuro aumentem as necessidades de prestar cuidados aos animais do campo”, acrescentou.

lince
Lince Lítio na natureza. Foto: LIFE Iberlince

Este será, então, mais um capítulo na história atribulada do lince-ibérico (Lynx pardinus), o felino das barbas e dos pêlos em forma de pincel na ponta das orelhas.

Depois de no século XIX a população mundial da espécie estar estimada em cerca de 100.000 animais, distribuídos por Portugal e Espanha, o lince-ibérico chegou ao início do século XXI reduzido a menos de 100. Em Portugal, a espécie vivia, então, numa situação de “pré-extinção”. 

O declínio pode ser explicado pelo colapso das populações de coelho-bravo, a principal presa do lince, especialmente por causa de duas doenças: a mixomatose (nos anos 50) e a febre hemorrágica viral (nos anos 80). A isto há a juntar a caça indiscriminada e a perda de habitat, pelas campanhas agrícolas e de reflorestação que foram destruindo os matagais mediterrânicos. 

Graças aos esforços conservacionistas de Portugal e Espanha, tanto a nível da reprodução em cativeiro como na recuperação de habitats e reforço das populações selvagens, a espécie está a começar a regressar aos seus territórios históricos.

Esta é uma espécie classificada desde 22 de Junho de 2015 como Em Perigo de extinção, depois de anos na categoria mais elevada atribuída pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), Criticamente em Perigo.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.