Há uma ave marinha que nasceu hoje e está em directo

Uma bola de penugem cinzenta de 70 gramas e com um bico proeminente aninha-se debaixo do seu progenitor. Esta cria de cagarra nasceu hoje nas Berlengas e podemos assistir ao crescimento desta ave marinha graças a uma webcam que está a transmitir pela primeira vez.

 

“A primeira vez que vimos a cria foi às 12h20”, diz Joana Andrade à Wilder. Joana é a coordenadora do Departamento de Conservação Marinha da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (Spea) e conhece bem as Berlengas e as suas aves. Está à frente do LIFE Berlengas que, entre 2014 e 2018, constrói ninhos, faz anilhagens, arranca plantas exóticas, entre outras acções para conservar os habitats, plantas endémicas e aves marinhas deste arquipélago.

As imagens transmitidas em tempo real mostram o progenitor e a cria no ninho, localizado na colónia de Melreu, monitorizada há vários anos.

Quando nasce, uma cagarra pesa em média 70 gramas. “Cabe perfeitamente na palma da mão! É muito levezinha”, conta Joana Andrade. “Aos 40 dias de idade, o seu peso já equivale ao dos adultos, aproximadamente 800 gramas”, acrescenta.

Segundo a Spea, a fêmea terá entre 16 e 18 anos de idade e o macho 11 anos. Nesta espécie, a longevidade é de, pelo menos, 30 anos. “Os progenitores vão-se revezando no ninho e só conseguimos ver os dois com a cria quando fazem a troca” de turnos.

Este é um dos 1.000 casais de cagarras (Calonectris borealis) do arquipélago das Berlengas. “A maior colónia é a do Farilhão Grande, um ilhéu mais afastado e sem ocupação humana, com escarpas muito declivosas. Lá há cagarras por todo o lado”, explica a ornitóloga. Na ilha da Berlenga as aves organizam-se em três ou quatro núcleos, como o de Melreu.

 

Agarra. Foto: Ana Isabel Fagundes
Cagarra. Foto: Ana Isabel Fagundes

 

As cagarras nidificam em cavidades. “Onde há solo escavam buracos e túneis; onde não há nidificam em cavidades rochosas. Mas na Berlenga há pouco solo e as cavidades estão todas ocupadas. Por isso temos construído ninhos artificiais com pedras ou caixas de madeira”, acrescenta. Nos últimos anos, o número de casais nificantes tem vindo a aumentar.

É entre Fevereiro e Março que as cagarras começam a chegar às Berlengas. Esta espécie só põe um ovo por ano. Pesa em média 90 gramas e equivale a 29% da massa corporal da fêmea; é branco e muito resistente. No caso do ninho em directo, a postura aconteceu em Junho.

“O ovo nunca pode ficar sozinho, por questões térmicas, e o macho e a fêmea revezam-se em turnos que podem durar uma semana”, acrescenta Joana Andrade.

Quando a cria nasce, os turnos são mais curtos. “É preciso alimentar a cria, especificamente com pequenos peixes e lulas que são digeridos no estômago dos pais. Estes depois regurgitam este óleo rico e alimentam a cria bico a bico.”

O cuidado dura até meados de Setembro e Outubro. Nesta altura, a ave está prestes a conseguir voar pela primeira vez. Mas antes, terá de passar as últimas três a quatro semanas sozinha no ninho, porque os seus progenitores migram mais cedo. “A cria, que já é um juvenil, pode ficar mais pesada que os progenitores; tem de armazenar reservas suficientes até conseguir voar para se alimentar”, explica. Quando sai do ninho, a jovem cagarra junta-se a outros juvenis e durante anos vão descobrir juntos o oceano. Quando chegarem à idade adulta regressarão à colónia onde nasceram.

Todos os anos no Outono as cagarras deixam as Berlengas para trás e migram para o Hemisfério Sul para passar o Inverno. “Vão atrás da abundância de alimento para a costa do Brasil ou para a costa de África, em migrações directas, quase sem desvios.”

Segundo Joana Andrade, as cagarras são aves muito bem adaptadas ao oceano. “Dão-se mesmo bem a voar e no mar; em terra são mais desengonçadas mas não deixam de ser muito despachadas.”

 

[divider type=”thick”]Agora é a sua vez. Saiba identificar cagarras sem sair de terra:

Se quiser ver cagarras a partir da costa, os melhores locais são Peniche, Cabo Raso e Cabo Espichel. “Entre a Primavera e o início do Outono, as cagarras estão a alimentar-se e podemos vê-las passar. Aproximam-se um pouco mais da costa ao início da manhã e ao fim da tarde”, explica Joana Andrade.

Aqui ficam algumas dicas para as distinguir e identificar ao longe. “As cagarras voam muito planado (não batem tanto as asas como as gaivotas); a envergadura de asas é bastante maior do que as gaivotas; voam mais junto à água (não voam muito alto como os gansos-patola, por exemplo) e têm um grande contraste entre o dorso cinzento e o ventre muito claro.”

De barco, é possível ver as jangadas que fazem na superfície da água, juntam-se em bandos muito grandes.

Para ver estas aves nos ninhos das Berlengas é difícil, uma vez que estes estão fora dos trilhos. Além disso, é grande a probabilidade de as aves estarem dentro das cavidades. Mas se passar a noite nas Berlengas, pode ouvi-las muito bem. “Como são aves coloniais, estão a vocalizar para defender os ninhos e para dizer que estão ali.” E já agora, saiba se está a ouvir uma fêmea ou um macho. “As fêmeas têm um som mais grave e os machos um som mais agudo”.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.