Lebre-ibérica guarda traços de espécie já desaparecida

A lebre-ibérica incorporou partes do genoma de outra lebre entretanto desaparecida da Península Ibérica, a lebre-variável. Num artigo publicado hoje pela revista Genome Biology, investigadores do CIBIO-InBIO explicam porquê.

 

A lebre-ibérica (Lepus granatensis) é a única lebre em Portugal.

Mas nem sempre foi assim. Há 20 mil anos, o ambiente na Península Ibérica era mais frio e parte da Europa estava coberta de gelo. Nessa época, a lebre-ibérica vivia apenas na metade Sul da Península Ibérica. A metade Norte era habitada pela lebre-variável (L. timidus), uma espécie que hoje está presente apenas em climas frios, nos Alpes e Norte da Eurásia.

 

Lebre-variável, que em tempos esteve presente na Península Ibérica, tendo-se cruzado com as lebres locais. Foto: Claudio Spadin

 

O aquecimento natural do clima favoreceu a expansão da lebre-ibérica para a área então ocupada pela lebre-variável. Durante este período de transição climática as duas espécies acabaram por se cruzar antes do desaparecimento da lebre variável da região.

Quando “se torna possível o cruzamento entre indivíduos de duas espécies, ou seja, quando ocorre hibridação, isto pode levar à troca de informação genética entre elas” explicou em comunicado José Melo-Ferreira, investigador do CIBIO-InBIO e coordenador do estudo. “Foi precisamente este fenómeno, a que chamamos introgressão, que aconteceu com a lebre Ibérica.”

Hoje encontramos na lebre-ibérica fragmentos que vieram da lebre-variável. Como o ADN mitocondrial. No Norte da Península Ibérica, quase todas as lebres-ibéricas têm o ADN mitocondrial da lebre-variável. Já no Sul, apenas se encontra o ADN mitocondrial original da lebre-ibérica.

Perante este cenário, os autores do estudo quiseram descobrir como estes cruzamentos no passado afectaram todo o genoma da lebre-ibérica e se as trocas genéticas entre as duas espécies ocorreram somente por acaso ou se resultaram de selecção natural. Terá sido esta troca genética vantajosa para a lebre-ibérica?

 

Lebre-ibérica. Foto: Pedro Moreira

 

A investigação analisou genomas completos das duas espécies e permitiu perceber que, apesar de existirem inúmeras incompatibilidades que impediram a livre troca de genes entre as espécies, algumas porções do genoma nuclear vindas da lebre variável invadiram o genoma da lebre-ibérica. Mas, ao contrário do que se tinha visto no ADN mitocondrial, as porções “estrangeiras” são geralmente raras e ocorrem em lebres Ibéricas tanto no Norte como no Sul da Península Ibérica.

“Para compreender estas diferenças simulámos o processo de expansão da lebre Ibérica para Norte, invadindo uma região ocupada pela lebre variável, com cruzamentos entre as espécies”, explicou Fernando Seixas, primeiro autor do artigo. De acordo com o investigador, “os resultados indicam que, muito provavelmente, foi mesmo o acaso, durante a substituição das populações de uma espécie pelas da outra, o factor preponderante na maior parte das trocas de informação genética, tanto do ADN mitocondrial como das porções do genoma nuclear”.

No entanto, a introgressão não é rara nem ter-se-á dado ao acaso em todos os genes. Entre os genes nucleares transferidos da lebre-variável, alguns apresentam padrões excepcionais. “Por vezes a informação «estrangeira» ocorre com muito maior frequência do que o esperado, de acordo com as nossas simulações, sugerindo que a introgressão nestes genes foi guiada pela selecção natural”, revelou José Melo-Ferreira.

“Analisando as funções destes genes, percebemos que estão relacionados com funções imunitárias e reprodutivas dos machos. Uma melhor capacidade reprodutiva dos machos, possivelmente em resposta à introgressão do ADN mitocondrial, e de resistência a doenças poderá explicar a vantagem evolutiva desta introgressão”, explicou o investigador.

Este estudo insere-se num projecto de cooperação internacional – Laboratório Internacional Associado (LIA) “Biodiversidade e Evolução” – entre o CIBIO-InBIO e duas instituições do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) em Montpellier, França.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.