capas de papel empilhadas num armário de prateleiras
Herbário Museu Nacional História Natural e Ciência

Lista Vermelha anda à caça de plantas com história nos herbários

“Parece mesmo que estamos à caça de pokemons”, brinca Paulo Pereira. Este botânico e os outros membros da equipa do projecto da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental andam em busca de centenas de plantas por todo o país. Nos campos, em serras, leitos de rios, em baldios. Ou dentro de quatro paredes, como nos herbários.

 

“Se não houvesse herbários, não havia lista vermelha”, sublinha Paulo Pereira, que faz parte da Sociedade Portuguesa de Botânica (SPB). Desde Outubro de 2016 que a SPB e a Phytos-Associação Portuguesa de Ciência da Vegetação coordenam o projecto da Lista Vermelha da Flora Vascular, em parceria com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.

Ao contrário dos musgos, por exemplo, as plantas vasculares têm vasos condutores de seiva. Até ao final de Setembro, quando termina o projecto, a equipa quer preencher as lacunas de conhecimento sobre a flora vascular em Portugal Continental e avaliar o risco de extinção dessas espécies para o território, de acordo com os critérios da União Internacional para a Conservação da Natureza.

Os 11 herbários que colaboram com a equipa estão a ajudar a construir uma espécie de mapas de caça ao tesouro. É destes espaços que saem muitas das pistas para decifrar a história de espécies que já foram referenciadas para Portugal, mas não são vistas há muito tempo e ninguém sabe onde ocorriam ou se ocorrem ainda.

É o caso do Herbário da Universidade de Lisboa (LISU), no edifício do Museu Nacional de História Natural e da Ciência. Aqui se guardam quase 300.000 folhas com exemplares de espécies cuidadosamente conservados. Destes, quase metade são de plantas vasculares, explicou à Wilder Ana Isabel Correia, curadora das plantas vasculares e das algas deste herbário.

 

folha de herbário
Folha do Herbário da Universidade de Lisboa. Foto: Helena Geraldes/Wilder

 

É aqui que Paulo Pereira e Sara Lobo Dias – também membro da SPB e voluntária neste projecto – andam à procura de pistas para a Lista Vermelha, no final de Janeiro, ajudados por Ana Isabel Correia e por Alexandra Lucas, técnica do herbário. À sua volta encontram-se caules, flores e folhas de centenas de plantas, por vezes também os frutos ou as sementes dessas espécies. Todos devidamente secos e conservados, colados em folhas de papel de tamanho A3, que normalmente ficam guardadas em pastas, em grandes armários de madeira.

As folhas mais antigas são de finais do século XVIII. Muitas conservam plantas recolhidas no Brasil ou em África, em expedições científicas de reconhecimento e de marcação do território que demoravam muitos meses e punham em risco a vida de quem as fazia.

 

Folha de herbário
Folha do Herbário da Universidade de Lisboa. Foto: Helena Geraldes/Wilder

 

Mas a equipa da Lista Vermelha está de olho nas colecções de plantas recolhidas em Portugal Continental, em sítios recônditos como “a 1.970 metros de altitude na Serra da Estrela” (como o Taraxacum estrelense, na imagem acima), ou “no Cabo Mondego, numa zona próxima do farol”, num total de mais de 32.000 exemplares de flora. Alguns pertencem à colecção do herbário há mais de dois séculos, como atestam as anotações em cada folha.

 

Novidades para a Tanacetum microphyllum

Das 621 plantas-alvo que o projecto definiu como as espécies a que iria dedicar mais atenção, pelo menos 50 espécies de plantas “estavam a zero”: não havia qualquer registo conhecido sobre a região portuguesa onde tinham sido observadas nem dados de observações recentes, por exemplo no portal Flora-On.

Para estas plantas e outras com muito pouca informação, num total de mais de 200 espécies, os herbários estão a dar uma grande ajuda, adianta Paulo Pereira, que destaca a colecção do herbário LISU. “Das [plantas] que estavam a zero, cerca de um terço passaram a ter alguma informação graças a este herbário.”

A Tanacetum microphyllum, por exemplo, é uma espécie que já tinha sido dada como extinta ou desaparecida do território português. “Esta é uma planta de leitos de cheia. Já tínhamos procurado no curso do Guadiana, mas descobrimos três folhas [no herbário] que mostram que no final do século XIX ocorria perto de Malpica do Tejo ou de Portas de Ródão.”

Resultado: foram em busca da planta nestes locais. Como não a encontraram, nem aqui nem noutros lados, deverá ser dada como desaparecida – mas apenas “neste momento”, ressalva. “Isto vai chamar a atenção para esta e outras plantas na mesma situação.” À semelhança desta espécie, aliás, muitas plantas típicas de leitos de cheia estão a ser dadas como desaparecidas ou correm grandes riscos, devido à construção de barragens no Tejo e no Douro, adianta.

Alvo de buscas vai ser também a Damasonium bourgaei. Esta planta mediterrânica, chamada de ‘estrela da água’ em inglês e francês, “ocorre em Portugal em piscinas de rocha no Algarve”. Mas nesta visita ao herbário, a equipa achou “um registo [da espécie] para a lezíria da Azambuja, datado de 1879, onde nessa data era dada como muito frequente”. Irão à procura, mas é pouco provável que tenham sorte, uma vez que “a zona da lezíria da Azambuja hoje em dia tem imensa agricultura.”

 

planta da espécie Damasonium bourgai
Damasonium bourgai. Foto: Ron Forley/Flora-On

 

Ainda assim, não se vai tratar de um esforço inglório. É que os herbários estão não só a dar pistas para novos locais de espécies raras ou eventualmente desaparecidas, mas também ajudam a desenhar os mapas de distribuição de muitas plantas em épocas passadas.

Um exemplo? A arnica, uma espécie conhecida da medicina tradicional. “Há hoje muitos exemplares de arnica (Arnica montana) em Alvão, em Montalegre e no Gerês, mas os herbários permitiram-nos perceber que antigamente havia arnica pelo país inteiro.”

 

“Isto vão ser os nossos linces”

Quem o diz é Paulo Pereira. Tal como o lince-ibérico, um dos felinos mais raros do mundo, algumas espécies deviam ser alvo de uma atenção redobrada, por estarem em risco de desaparecer do território português. Algumas estão mesmo à beira da extinção, pois não ocorrem em mais lado nenhum do mundo.

“Estamos a conhecer locais que são autênticos ‘hotspots’ de espécies em perigo de extinção. Devíamos fazer novas áreas protegidas, mas para isso, este conhecimento tem de estar divulgado”, sublinha o botânico, lembrando que para isso é importante a Lista Vermelha.

O Alentejo, além das zonas húmidas, é a região do país onde estão em risco mais espécies. Como a mandrágora, protagonista de solos calcários em olivais antigos alentejanos, cada vez menos avistada. É que a agricultura intensiva é uma das grandes ameaças à sobrevivência de espécies mais frágeis, alerta.

 

planta da mandrágora, com flores roxas
Mandrágora (Mandragora autumnalis). Foto: M. Porto/Flora-On

 

Quanto às zonas húmidas, as visitas da equipa da Lista Vermelha às zonas do Baixo Vouga e do Baixo Mondego são outro exemplo preocupante. Para já, mais de 10 espécies com registos históricos para aquelas áreas foram dadas como desaparecidas, atingidas pelo jacinto d’água, uma planta exótica invasora, pela poluição das águas e pela plantação de arrozais.

Mas qual será o problema, se uma espécie de planta for dada como extinta? “Enquanto espécie dominante, não temos o direito de extinguir outras espécies”, acredita. “É uma obrigação ética protegermos a diversidade que existe na natureza, criada ao longo de milhões de anos. Um mundo com uma só espécie seria um mundo muito aborrecido.”

 

[divider type=”thin”]Saiba mais.

Das 3.300 espécies de plantas que constam da base de dados do portal Flora-On, coordenado pela SPB, o projecto da Lista Vermelha definiu 621 espécies como plantas-alvo. Neste trabalho, co-financiado pelo Fundo de Coesão e pelo Fundo Ambiental, colaboram cerca de 90 pessoas, na sua maior parte voluntários.

Na lista de plantas-alvo, entram todas as plantas listadas pela Directiva Habitats, directiva comunitária relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens, mas também mais de 200 espécies consideradas raras ou possivelmente desaparecidas em Portugal. Estas últimas são plantas referidas por exemplo no portal Flora Iberica – uma base de dados das plantas vasculares da Península Ibérica coordenada pelo espanhol Real Jardín Botánico – mas que não há registos actualmente em território português, ou então ocorrem em espaços muito limitados.

Os herbários que colaboraram com a Lista Vermelha da Flora Vascular são, além do LISU, outros dez: LISE – Herbário da Estação Agronómica Nacional, ELVE – Herbário da Estação Nacional de Melhoramento de Plantas, AVE – Herbário da Universidade de Aveiro, COI – Herbário da Universidade de Coimbra, UEVH – Herbário da Universidade de Évora, ALGU – Herbário da Universidade do Algarve, PO – Herbário da Universidade do Porto, LISI – Herbário do Instituto Superior de Agronomia, LISFA – Herbário do lnstituto Nacional de lnvestigação Agráría e Veterinária e BRESA – Herbário do Instituto Politécnico de Bragança. A estes herbários, juntam-se ainda outras bases de dados, como bancos de germoplasma.

No caso do LISU, pode conhecer melhor este herbário aqui.

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Fique ainda a saber mais sobre o projecto da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, neste artigo da Wilder.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.