Lince-ibérico. Foto: Programa de Conservação Ex-Situ

Missão Natureza 22: já há 9 propostas para uma nova forma de fazer conservação em Portugal

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Não podemos continuar a fazer mais do mesmo se quisermos travar a perda de espécies e habitats em Portugal, alertam os peritos. Hoje, e no âmbito da campanha Missão Natureza 22, foram reveladas as propostas para uma nova forma de fazer conservação em Portugal e para travar o declínio da Biodiversidade até 2030.

Durante 2022, declarado o Ano do Património Natural Português, vão estar em debate novas soluções para melhorar a conservação da natureza em Portugal, país com 35.000 espécies de animais e plantas, 99 tipos de habitats naturais (16 dos quais prioritários) e 335 espécies protegidas.

Acontece que esta riqueza natural enfrenta graves ameaças à sua sobrevivência, tanto pelo declínio acentuado da Biodiversidade como pelas alterações climáticas.

Lince-ibérico. Foto: Programa de Conservação Ex-Situ

Além disso, Portugal comprometeu-se a cumprir metas europeias e internacionais até 2030: assegurar a conservação de 30% do território nacional e 10% de forma estrita. De momento cerca de 22% do território continental terrestre está sujeito a algum tipo de figura de conservação e 0,7% conservados de forma estrita (apenas 0.02% no mar). 

“Muito ainda está por fazer”, disse esta manhã João Paulo Catarino, secretário de Estado da Conservação da Natureza e da Florestas no Palácio Nacional de Queluz, durante a conferência inaugural da Missão Natureza 22, a primeira de nove conferências dedicadas à natureza portuguesa e promovida pelo Instituto da Conservação da Natureza das Florestas (ICNF). “Precisamos mesmo de fazer mais.” Durante 2022 serão debatidos e decididos “que compromissos deverão ser assumidos por todos”, acrescentou.

Para lançar os trabalhos, foi apresentado esta manhã na conferência o estudo “Biodiversidade 2030 – Nova agenda para a Conservação em Contexto de Alterações Climáticas” por Miguel Bastos Araújo, investigador coordenador no Museo Nacional de Ciencias Naturales de Madrid, Professor Catedrático da Universidade de Évora e Professor Catedrático convidado do Imperial College de Londres.

Este perito, que também é membro do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e foi o vencedor do Prémio Pessoa em 2018, apresentou, em nome de uma equipa de especialistas e numa mensagem gravada, um conjunto de recomendações para melhorar a gestão da biodiversidade em Portugal, fruto de uma reflexão independente encomendada pelo Governo português.

Financiado pelo Fundo Ambiental, o estudo foi realizado de Outubro de 2020 a Janeiro de 2022, por uma equipa que inclui, como co-coordenadores Maria do Rosário Oliveira (pela componente Território), Isabel Sousa Pinto (pela componente Regiões costeiras), Emanuel Gonçalves (pela componente Mar), Sara Cristina Ferreira Marques Antunes (pela componente Aguas interiores) e Sofia Santos (pela componente Financiamento).

São, então, propostas nove reformas, a começar pela criação da Estrutura de Adaptação Climática de Biodiversidade, a fim de ajudar a concretizar o objectivo de conservar 30% do território português. Em especial para garantir a sobrevivência das espécies selvagens perante as alterações climáticas. Conforme proposto por estes peritos, esta Estrutura terá duas componentes: áreas protegidas e refúgios climáticos – para onde as espécies se deverão dirigir, em especial na região Oeste a Norte de Lisboa e em Trás-os-Montes – e corredores climáticos, que vão facilitar a conectividade entre essas áreas.

Águia-real. Foto: Gregory “Slobirdr” Smith/Wiki Commons

Outra proposta é reforçar o nível de protecção das áreas classificadas de modo estrito (onde estão excluídas as actividades extractivas) para uma cobertura de 10% (passando dos actuais 0,17% em terra e dos 0,02% no mar). “Praticamente tudo está por fazer”, comentou Miguel Bastos Araújo.

Uma dificuldade a ultrapassar é o facto de grande parte do território terrestre ser privado. Mas aqui também foram identificadas oportunidades: a reconversão de territórios públicos florestais e dos territórios devolutos no interior. Dois caminhos a seguir podem ser a aquisição de terrenos pelo Estado e o envolvimento dos privados, através de contratos-programa para a gestão activa para a Biodiversidade.

Outras reformas propostas por esta equipa é a definição de planos de gestão adaptativa activa em ciclos longos (numa lógica de boots-on-the-ground, contrastando com a gestão passiva) e a melhoria do sistema de co-gestão das áreas protegidas.

As duas grandes prioridades identificadas para o esforço de restauro de habitats são as águas interiores e os ecossistemas marinhos. Segundo Miguel Bastos Araújo, a equipa identificou 2.416 quilómetros de linhas de água em estado mau, medíocre e razoável e 408 quilómetros de linhas de água em refúgios climáticos passíveis de serem restauradas. É preciso ainda garantir que se mantêm os 2.830 quilómetros de linhas de água e os 309 quilómetros em refúgios climáticos que estão em bom estado. Além disso, a equipa estima que 50% das barragens obsoletas que deverão ser desmanteladas estão em áreas classificadas.

Quanto ao restauro dos ecossistemas marinhos, é proposto um programa de restauro ecológico focado, numa primeira fase, no restauro dos sapais, das pradarias de ervas marinhas e florestas de kelp, em áreas da Rede Nacional de Áreas Marinhas Protegidas. É também proposta a identificação de novas áreas protegidas, incluindo florestas de kelp e outras florestas de macroalgas.

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Ribeira. Foto: Helena Geraldes (arquivo)

Outras reformas hoje propostas, depois de longos meses de trabalho, são a implementação do princípio do poluidor-pagador nas áreas protegidas, com uma estimativa de um potencial de entre 40 e 100 milhões de euros de receitas por ano. E ainda a criação de mercados de créditos de biodiversidade, geridos por um Biobank, e mecanismos de fiscalidade verde. O objectivo é que “quem cria capital natural deve ser beneficiado e quem delapida deve ser onerado”, explicou o investigador.

Além destas reformas, a equipa de peritos propôs sete recomendações, entre elas a criação de um Sistema Nacional sobre Biodiversidade, a criação de um grupo de trabalho dedicado à conservação da natureza à escala ibérica e a revisão das prioridades e metas da Estratégia Nacional de Conservação da Biodiversidade 2030.

Esta nova forma de fazer conservação da natureza vai tentar resolver uma série de fragilidades e ameaças, entre elas o “subfinanciamento crónico”, a “grande dispersão de informação sobre a caracterização da biodiversidade”, a fraca experiência dos actores locais na gestão activa do património natural e a dificuldade da convergência de políticas.

Paralelamente, o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) vai começar a debater sete objectivos temáticos que escolheu como prioritários: aumentar a percepção e apropriação pública do património natural; melhorar o estado de conservação do património natural; vigiar e controlar espécies exóticas invasoras; compatibilizar economia e biodiversidade; reforçar as infraestruturas verdes e a conectividade ecológica; estimular a cooperação internacional; e inovar no investimento em biodiversidade.

Perdiz-vermelha. Foto: Pierre Dalous/Wiki Commons

O ICNF adiantou que entre as acções a implementar estão o restauro de habitats de suporte ao cavalo-marinho, lontra, lince-ibérico (Malcata), lobo-ibérico, águia-real, perdiz-vermelha, abutre-preto, andorinha-do-mar-anã, bosques ripícolas, turfeiras, pradarias marinhas, zimbrais e carvalhais; a aquisição de áreas sob protecção estrita; a construção de charcas e zonas de abrigo à biodiversidade urbana; e a recuperação de salinas e restauro de zonas húmidas.

Outras acções previstas são a criação do Sistema de Informação e Vigilância e Alerta Precoce de espécies exóticas invasoras e a constituição de equipas de intervenção precoce e resposta rápida; um mecanismo de remuneração de operações de gestão úteis para a biodiversidade; e a criação de mecanismos de co-pagamento da gestão de serviços de ecossistema.

Durante este ano, estes temas vão nortear as decisões a tomar para que Portugal consiga atingir os seus objectivos de conservação da natureza.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.