Coruja-do-mato (Strix aluco). Foto: Joe Pell

No Estuário do Tejo, à procura dos sons das aves nocturnas

O projecto chama-se The Sound Approach e tem como objectivo popularizar a audição do canto de aves para estudar a sua distribuição. A Wilder foi até à Reserva Natural do Estuário do Tejo ouvir algumas rapinas nocturnas.

 

O voo rasante de um noitibó-cinzento é o primeiro a rasgar o céu laranja no caminho de acesso a Pancas, onde a luz do sol já quase não se vê. “Não estava à espera de ainda ver esta espécie no Outono”, diz Magnus Robb, ornitólogo britânico de 45 anos que visita a zona da Reserva Natural do Estuário do Tejo várias vezes durante o ano para o seu trabalho.

Foi em 2000 que as suas composições, em que usava canções de pássaros para formar novas melodias, chamaram a atenção de Mark Constantine, fundador da empresa de cosméticos Lush, que o convidou para se juntar ao projecto The Sound Approach – uma alternativa ao mais popularizado ‘birdwatching’ através da audição, gravação e criação de um banco sonoro para o estudo de aves.

Até hoje, Magnus contribuiu com cerca de metade das mais de 53.000 gravações do projecto.

Desta vez, o objectivo é observar e gravar as espécies crepusculares e nocturnas desta zona protegida. “Também faço gravações durante o dia, mas de noite é muito mais envolvente, é mais fácil focarmo-nos só no som”, explica.

 

Magnus Robb. Foto: D.R.
Magnus Robb, com equipamento para captar som. Foto: D.R.

 

É nas espécies noctívagas que o trabalho de Magnus Robb se torna por vezes mais valioso. Estes animais são mais activos de noite, quando não se conseguem ver, e por isso especializam-se mais no som como ferramenta de comunicação do que outros que usam também as próprias penas com esse objectivo.

Pelo caminho, Magnus vai apontando sítios onde sabe que existem ninhos, como um buraco conspícuo num telhado ou a cova de um grande sobreiro, sempre atento ao que se ouve para lá das janelas abertas. Repentinamente, o carro pára para se ouvir melhor a repetição de um som agudo que surgiu ali de perto.

Confirmando que não se trata de mais um dos sinos do gado nos terrenos, percebe que está a ouvir um animal mais pequeno e activo ao anoitecer, um mocho-galego (Athene noctua). O mocho continua o seu chamamento, muito menos preocupado em fazer pouco barulho do que os humanos que o procuram e, curiosamente, percebe-se que se aproxima de cada vez que emite a sua vocalização, parecida com o latido de um cachorro.

 

 

Parece estar mesmo ali, mas quando é apontada a lanterna, pára e desaparece, sem nunca ter sido visto. “Em Portugal costuma ser mais fácil observar um mocho-galego porque se trata de uma rapina nocturna que o contradiz, já que tem alguns hábitos de actividade diurna.” No entanto, na maioria dos países da Europa, sobretudo por alterações no seu habitat, o seu estatuto tem estado em declínio.

A lua alta e algumas constelações são agora as únicas fontes de luz para além dos faróis do carro que percorrem a estrada. Pela janela também se aponta uma lanterna à procura de voos que surjam por entre os arbustos.

Mas é na zona pouco iluminada, embora bastante próxima da vedação que separa a estrada dos terrenos, que uma figura compacta e de tons amadeirados se desvenda calmamente pousada num pequeno poste.

Quiçá o mesmo mocho-galego que se ouviu a chamar ainda antes deixa-se observar pelos binóculos, que permitem ver de muito perto as suas listas em castanho escuro, as patas caracteristicamente cobertas por penugem e os seus grandes olhos amarelos. Só passados alguns minutos é que decide partir num voo ondulante, provavelmente para procurar invertebrados dos quais se alimenta.

 

Coruja-das-torres. Foto: Steve Garvie / Wiki Commons
Coruja-das-torres. Foto: Steve Garvie / Wiki Commons

 

O grito da coruja-das-torres (Tyto alba) pode ser um som bastante assustador de se ouvir em plena noite. Diferente dos mais célebres sons de coruja, esta espécie emite um tipo de piar muito agudo que serve de chamamento quando quer acasalar.

 

 

Desta vez, a sua vocalização, ouvida ao longe, serviu de iniciativa para deixar um microfone num ponto estratégico, onde já tinha sido fotografada uma ninhada destes animais.

Entretanto, são vários os coelhos que, receosos, cruzam os faróis, e uma figura imóvel bem no meio da estrada leva a mais uma paragem. Os binóculos revelam um noitibó-cinzento (Caprimulgus europaeus) que, imóvel, se deixa observar.

 

Noitibó-cinzento (Caprimulgus_europaeus). Foto: Jenny Th / Wiki Commons
Noitibó-cinzento (Caprimulgus_europaeus). Foto: Jenny Th / Wiki Commons

 

São os detalhes desta espécie que revelam que não se trata de um pássaro comum como pode parecer num primeiro voo. A sua silhueta, conjugada com uma plumagem acinzentada, uns grandes olhos pretos e um canto que parece o de um insecto, fazem deste animal uma figura muito distinta. E diferente foi também o seu comportamento, já que, em vez de voar assustado, se manteve no mesmo sítio sem mais do que um pequeno desvio para dar passagem ao carro.

De volta à zona onde foi deixado o microfone, ouvem-se vários sons de coruja. Surpreendentemente, não são os de coruja-das-torres que teria ali o seu ninho, mas de corujas-do-mato (Strix aluco): um macho à esquerda e uma fêmea à direita, separados por um enorme sobreiro.

 

 

O macho evidencia-se pelo seu ‘Uuu’ característico, seguido por outro mais longo e vibrante, depois de uma pausa. A fêmea vocaliza no mesmo padrão, mas o seu canto é distinguível por ter uma menor pausa e ser um pouco mais estridente.

Aproveitando a conversa entre o casal, Magnus faz a sua experiente imitação do chamamento de uma coruja macho – “É comum elas comunicarem de volta”, diz – e consegue ouvir uns sons por parte da fêmea que nunca tinha ouvido de perto.

Recuperado o microfone para se analisarem as gravações mais tarde, eis que surge um segundo macho e, de súbito, ecoa uma alta sinfonia de sons muitos diferentes. São chamamentos territoriais, bem mais agressivos e característicos do Outono. “É sempre quando desligamos o microfone”, desabafa.

A colecção de sons do Sound Approach é constantemente actualizada com vocalizações gravadas desde a Europa à Nova Zelândia. No seu ‘website’ encontram-se informações sobre as publicações especializadas que já realizaram, por exemplo, sobre o canto de corujas, e uma lista de espécies gravadas com particular interesse em estudar a idade, sexo, ou até as novas espécies que se podem identificar através dos sons característicos.

Os livros são geralmente acompanhados por CDs em que se podem ouvir os sons mais cativantes, tal como na página Soundcloud do projecto.

Em plena madrugada do dia seguinte, e já regressando ao alcatrão perto da zona das salinas, ainda há tempo para ouvir o que por ali há, uma última vez. Não se ouvem mochos nem corujas, apenas um som parecido ao de um sapo, mas que se percebe vir de um animal bem maior. “Sabes o que está a fazer este barulho? Não vais adivinhar. É um grupo de flamingos”.

 

[divider type=”thin”]Fique a saber mais sobre Magnus Robb.

Magnus Robb nasceu e cresceu em Edimburgo e estudou música na Universidade de York e composição em Londres. Viveu também em Amesterdão, mas mudou-se para Portugal, onde vive desde 2009.

Foi a procura de melodias para as suas composições que o levou a gravar o canto de aves, tendo eventualmente decidido dedicar-se completamente ao projecto The Sound Approach.

O seu trabalho implica várias horas de gravação em campo e análise de sonogramas, tendo o seu treino prévio como músico permitido a Robb especializar-se no discernimento de padrões e de sons muito específicos.

Já publicou vários livros, sendo o mais recente, ‘Undiscovered Owls’, um título cujo trabalho de campo o levou a redescobrir uma espécie, a coruja de Omã. Ultimamente, a forma como os pássaros migrantes ‘descrevem’ as suas rotas pela imitação de sons que ouvem pelo caminho tem sido, para ele, um tema de grande fascínio.

 

Magnus Robb, durante uma saída no Cabo Espichel. Foto: Bárbara Teixeira
Magnus Robb, durante uma saída no Cabo Espichel. Foto: Bárbara Teixeira

Bárbara Teixeira

Aluna António Granado - comunicação de ciência