O dia em que Carmen foi correr e um lince se atravessou no seu caminho

Carmen B. de los Santos tinha um sonho, ver um lince-ibérico. Este mês, a investigadora da Universidade do Algarve foi surpreendida quando um destes felinos se atravessou no seu caminho.

 

O lince-ibérico (Lynx pardinus) já esteve no limiar da extinção, com menos de 90 animais em todo o planeta. Hoje, graças a décadas de esforços de conservação, serão mais de 800, 120 dos quais em Portugal.

Talvez por isso, ver um lince-ibérico em estado selvagem continue a ser, para muitos, um momento raro e inesquecível.

 

Lince-ibérico. Foto: Programa de Conservação Ex-situ/Arquivo

 

Carmen B. de los Santos teve o seu momento este mês. Uma surpresa completa.

“Avistar o lince-ibérico era um dos meus sonhos”, contou à Wilder esta investigadora do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve (CCMAR-UALG).

“Passei a minha infância numa casa de campo, próxima das florestas de pinheiros de Aznalcázar, uma vila sevilhana nos arredores do espaço natural de Doñana, do qual o lince é o animal insígnia.”

O encontro foi “uma vivência única que me fez sentir abençoada”.

Tudo aconteceu nesse mesmo pinhal de Aznalcázar, na região de Sevilha (na Andaluzia, Espanha), quando, numa manhã deste mês de Agosto, Carmen B. de los Santos decidiu sair para correr.

“Escolhi uma área de pinheiros em Aznalcázar. Durante a corrida, mantinha a cabeça ocupada em outros assuntos, sem pensar num possível encontro com vida selvagem. De repente, vi uma sombra grande atravessar o caminho no qual estava a correr. ‘Não acredito’, disse a mim própria. Parei rapidamente. Muito silenciosamente, com o coração a bater freneticamente e com as mãos desastradas por causa dos nervos, abri a câmara do telemóvel e avancei no caminho para tentar vê-lo novamente.”

“Lá estava. Um lince belíssimo, que caminhava tranquilo entre a vegetação. Senti o coração cheio de admiração pelo animal. Caminhava devagar. Parou para limpar o seu pelo com a língua, como fazem os gatos domésticos, e continuou a caminhar com serenidade através dos arbustos”, recorda Carmen B. de los Santos.

 

https://twitter.com/cbdelosantos/status/1293202416326840320

 

“Eu continuava a filmá-lo à distância, sem me aproximar e sem fazer barulho, para não interferir no seu comportamento.” A bióloga nota que “em encontros com vida selvagem de curta distância não devemos fazer movimentos bruscos, nem barulhos, e devemos deixar que o animal se vá embora tranquilamente”.

“Depois de dois minutos de observação, decidi que já estava na hora de continuar com a minha corrida”, continua a contar Carmen B. de los Santos.

“O pico de adrenalina que experimentei com o encontro, fez-me correr mais rápido que nunca. Estava ansiosa por chegar a casa e partilhar a experiência com a minha família.”

“Nunca antes tinha visto um lince em estado selvagem, embora tenha passeado muito nestas florestas de pinheiros desde que era miúda. Dantes, apenas tinha visto um lince em cativeiro, muito ao longe (era uma mancha escura na distância), desde o observatório do Centro Nacional de Reprodução de Lince Ibérico em Silves.

O lince-ibérico, felino das barbas e dos pêlos em forma de pincel na ponta das orelhas, era uma espécie comum na Península Ibérica. Em meados do século XIX, seriam cem mil.

Mas o colapso das populações de coelhos-bravos, a sua principal presa, agravado por duas doenças – a mixomatose (nos anos 50) e a febre hemorrágica viral (nos anos 80) -, a caça indiscriminada e a perda de habitat pelas campanhas agrícolas e de reflorestação com eucalipto e pinheiro-manso, que destruíram os matagais mediterrâneos, ditaram o quase desaparecimento desta espécie.

 

Lince-ibérico. Foto: Programa de Conservação Ex-Situ

 

Até 2015, foi uma espécie Criticamente Em Perigo de extinção. Em Portugal, o lince-ibérico chegou a viver numa situação de “pré-extinção”.

Hoje, fruto de um enorme esforço de conservação a nível ibérico, que aposta na reintrodução na natureza de animais nascidos em cativeiro, o lince-ibérico está a recuperar, lentamente, os seus territórios históricos.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.