O que faz uma bióloga num barco de pesca?

Até 2020, a SPEA implementa o projecto MedAves Pesca, para descobrir qual o impacto das actividades de pesca nas populações de aves marinhas das Zonas de Protecção Especial portuguesas. Nas Berlengas, Elisabete Silva trabalha com a comunidade de pescadores para  desenvolver e testar medidas de mitigação da captura acidental de aves.

 

“Peixe, peixe!”, anuncia o mestre Pedro Jorge, bem cedo nesta manhã de Novembro. A embarcação a motor branca Dois Filhos está à pesca de robalos e douradas em redor da ilha Berlenga, a sete milhas náuticas (cerca de 13 quilómetros) de Peniche.

Ao fundo do barco com sete metros de comprimento, em que se pesca com aparelho de linhas e anzóis, Pedro Santos e Zé Manel recolhem as linhas largadas ao mar no dia anterior. A experiência e a força destes homens disfarçam a dureza da tarefa. Numa coreografia sincronizada e em silêncio cúmplice, os dois pescadores retiram da água dezenas de anzóis em poucos minutos. “É um robalo dos grandes”, regozija o mestre.

 

Berlenga vista de Norte a bordo do Dois Filhos. Foto: Elisabete Silva

 

Ao lado do mestre junto à proa, Elisabete Silva, 26 anos, regista as observações num caderno de campo. É bióloga e técnica de conservação marinha na Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) e trabalha há mais de dois anos nas Berlengas. Atualmente participa no projecto MedAves Pesca que, até 2020, estudará o impacto da atividade piscatória nas populações de aves marinhas. Elisabete faz observações em quatro embarcações diferentes, para monitorizar interações e testar medidas que possam reduzir as capturas acidentais de aves marinhas nas várias artes de pesca.

Hoje está a bordo do Dois Filhos. Anota as espécies de peixe retiradas do mar e, de 15 em 15 minutos, regista as interacções de aves marinhas: número, espécie, localização e direção do voo. Com estes dados espera caracterizar as populações e compreender o impacto das atividades de pesca nas comunidades de aves marinhas.

Todos os anos, cerca de 200 mil aves são capturadas acidentalmente em águas europeias, segundo a organização Birdlife International. Nas Berlengas, as espécies mais afetadas por capturas acidentais são o alcatraz ou ganso-patola (Morus bassanus), a cagarra (Calonectris borealis), a torda-mergulheira (Alca torda), a galheta (Phalacrocorax aristotelis) e a pardela-balear (Puffinus mauretanicus), a espécie de ave mais ameaçada da Europa e que pode ser avistada durante todo o ano ao largo da costa portuguesa.

 

Ganso-patola adulto. Foto: Andreas Trepte/Wiki Common

 

Estas aves mergulham para se alimentar e podem ficar presas nas redes, linhas e anzóis de pesca. “Quando as aves ficam presas nem sempre é possível resgatá-las a tempo”, lamenta a investigadora.

Um dos objetivos do MedAves Pesca é criar estratégias para mitigar o impacto da atividade piscatória e diminuir as capturas acidentais de aves marinhas. Uma dessas estratégias passará por utilizar uma espécie de papagaio de papel. “É um papagaio de tecido impermeável preto acoplado às bóias que sustentam o aparelho de pesca”, explica Elisabete. O dispositivo simula a presença de um predador a poucos metros da água. Com o movimento desta “ave” espera-se que a aproximação de outras aves seja evitada.

A manhã do Dois Filhos é passada dando voltas ao arquipélago das Berlengas. Ora lançando ao mar, ora recolhendo o palangre – assim se chama esta arte de pesca, constituída por uma linha principal de onde derivam linhas secundárias em intervalos regulares terminando cada uma num anzol.

 

Ilha da Berlenga vista de Sul a bordo do Dois Filhos. Foto: Elisabete Silva

 

Hoje o isco é caranguejo-pilado. “É preciso ter cuidado que ele morde. Ali o Pedro é especialista em levar dentadas de caranguejo”, avisa o mestre Pedro Jorge. Em cada lance, Pedro e Zé Manel preparam o isco e, no local indicado pelo mestre, largam ao mar os cem anzóis com uma rapidez malabarista. Um bloco de cimento afundado marcou o início da acção, outro marcará o fim. Serão o lastro para as linhas que ficam próximas da superfície. Bóias brancas e amarelas sinalizam o local e a propriedade do palangre. Com esta técnica e isco as espécies-alvo são o robalo (Dicentrarchus labrax) e a dourada (Sparus aurata). “São as espécies com maior valor comercial, e pescadas a anzol ainda valem mais”, explica Pedro Jorge, “mas também se apanha um pargo ou outro e uns sargos de vez em quando”. “É o melhor peixe do mundo, não há hipótese”, conclui.

O barco avança uns metros em direcção a uma bóia improvisada de esferovite branca. É a vez de recolher linhas do mar – a esta operação de recolha os pescadores chamam “alagem”. Com sorte, alar as artes é sinónimo de peixe que seguirá para a lota ainda esta tarde. A cena repetir-se-á várias vezes ao longo do dia. No barco há dezoito celhas  – uma espécie de gamelas ou alguidares, que contêm cada conjunto de linhas e cem anzóis pendurados nos rebordos de cortiça – para largar ao mar. “Ainda lançamos doze antes de parar para a bucha”, promete o mestre.

Pedro Jorge, que se dedica a esta vida há nove anos, transborda alegria durante toda a jornada. Apesar do som da rádio ser precário e abafado pelo barulho do motor, acompanha com vigor o refrão das músicas. O nome do barco é uma feliz coincidência. “Quando o comprei já vinha com este nome; como tenho dois filhos, deixei estar”, explica entre risos. Já a participação neste tipo de projectos de conservação não é um acaso. “Estamos sempre a tentar inovar e participamos em tudo o que seja importante para o desenvolvimento da região”.

 

A ilha-maravilha, um santuário de aves

Para Elisabete um dia na pesca já é um dia típico. Nos últimos dois anos fez mais de 100 embarques e passou cerca de 1.000 horas no mar. A cumplicidade com os pescadores é visível e fundamental. “Dependemos sempre deles para trabalhar”, afirma a investigadora. “No início é desafiante porque desconfiam, pensam que estamos a fiscalizar. Foi uma construção e agora está criada a confiança”, acrescenta. A confiança é notória. Apesar de ser a única mulher no mar, os pescadores tratam-na como igual e a integração na comunidade é total. “Uma das melhores coisas é o convívio com os pescadores”, assegura.

 

Ilhéu Cerro da Velha, nas Berlengas. Foto: João Gaspar

 

Um desses momentos de convívio acontece na ilha da Berlenga. O almoço é partilhado pela comunidade local no Bairro dos Pescadores, um pequeno aglomerado de dez ou doze casas, uma mini-aldeia piscatória embutida na encosta do lado Sul da ilha. A Berlenga tem apenas cinco residentes fixos: dois faroleiros da Marinha Portuguesa, dois vigilantes do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas e um simpático cão apropriadamente chamado Farol. Este bairro é sítio de repouso para os pescadores durante os dias em que não regressam a terra.

 

Elisabete Silva e o farol da Berlenga. Foto: João Gaspar

 

Elisabete percorre a pé toda a ilha. Os sinuosos trilhos que serpenteiam os 1.500 metros de comprimento e os 800 metros de largura da Berlenga já poucos segredos lhe escondem. Reserva de biosfera e área protegida, a Berlenga é um singular planalto verde que se eleva a cerca de 80 metros de altura no meio do Atlântico, contornado por escarpas, encostas, grutas, uma fortaleza e uma pequena praia. No ponto mais alto domina o farol. No caminho atravessam-se amiúde lagartixas-de-bocage (Podarcis bocagei) que depressa se refugiam nas fendas das rochas ou entre a densa e rasteira vegetação.

 

Lagartixa-de-Bocage. Foto: João Gaspar

 

O céu limpo permite avistar os outros grupos de pequenas ilhas do arquipélago: as Estelas a Oeste e os Farilhões mais a Norte. Estas ilhas são o habitat privilegiado de aves marinhas com estatutos de conservação vulneráveis. Em todas as direcções adornam cada um dos ilhéus ou mostram as asas em pleno voo. “Olha, um ganso-patola”, aponta Elisabete. “Nesta escarpa um casal de falcões-peregrinos vem fazer o ninho uma vez por ano”, explica. Noutras há ninhos de galhetas ou cagarras. “É um santuário de aves”.

É hora de regressar ao porto. O Sol alto anuncia o fim do dia no mar para o Dois Filhos, quase doze horas depois. Na paisagem em direcção à costa, o farol da Berlenga é substituído pelo do Cabo Carvoeiro. É quase como se houvesse uma linha imaginária entre os dois. Mais à frente, depois do histórico Forte de Peniche, os dois molhes do porto são os braços da cidade a receber de volta os pescadores e a vida que o mar lhes dá.

O mestre Pedro Jorge inclina a cabeça e estima a olho o balanço da jornada. “Estão para aí uns quarenta quilos, não foi grande pescaria”, arrisca com forçada modéstia. “Um dia bom são mais de cem”. Para Elisabete, o saldo é extremamente positivo. O dia acaba sem registo de qualquer ave presa nas linhas de pesca. “Infelizmente não é sempre assim”.

 

[divider type=”thick”]Saiba mais.

Descubra mais aqui sobre o projecto que está a conservar a natureza nas Berlengas.

 

[divider type=”thick”]Agora é a sua vez.

Aqui ficam seis espécies a não perder nas Berlengas.

 

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