Raquel Gaspar, durante uma acção de limpeza. Foto: João Augusto
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O que fez um ano de limpeza de lixo ao estuário do Sado

Mais de 1.700 embalagens de sal e uma tonelada de lixo foram retiradas do Estuário do Sado na última acção de limpeza “Mariscar SEM Lixo”, em Agosto. Será que a campanha que já tirou um total de 27 toneladas de lixo e 35.600 embalagens de sal vazias deu uma nova cara a um dos estuários mais importantes da Europa?

 

Os flamingos, golfinhos, pilritos, caranguejos-eremita, búzios e os cardumes de sargos, peixes-rei, tainhas e salemas decerto já notaram a diferença. Hoje, o estuário do Sado tem menos garrafas de sal, garrafões de lixívia, sacos de plástico, alcatifas, cordas, cadeiras e pneus.

Todos os meses desde Março de 2016, Raquel Gaspar organiza equipas de dezenas (e às vezes centenas) de voluntários que, a pouco e pouco, vão limpando aquele estuário, uma ferradura natural que liga Setúbal a Tróia.

“Hoje conseguimos constatar que há uma grande redução de embalagens deixadas na maré (…). A campanha está a dar frutos mas ainda não conseguiu eliminar totalmente este mau hábito”, contou ontem à Wilder Raquel Gaspar, a coordenadora da iniciativa e da cooperativa Ocean Alive.

 

Foto: Ocean Alive

 

A Campanha “Mariscar SEM Lixo” começou em Março de 2016, na Sexta-feira Santa, por tradição o grande pico anual de afluência de mariscadores no estuário, sítio da Rede Natura 2000 e casa da única população de golfinhos residente no nosso país. O grande objectivo da campanha é retirar o lixo marinho do Estuário do Sado, envolvendo a sociedade, e acabar com o mau hábito dos mariscadores do lingueirão e do casulo em deixar as embalagens de sal na maré.

É durante a maré baixa que centenas de mariscadores apanham o lingueirão deitando sal fino para as suas tocas. Como este animal tem uma concha muito sensível às perturbações de salinidade e temperatura, rapidamente emerge à superfície da areia e é apanhado.

No entanto, “uma parte dos mariscadores do lingueirão deixa as embalagens de plástico de sal vazias na beira-mar”, diz a Ocean Alive. Esta estima que cada mariscador profissional utilize cerca de 10 embalagens por maré.

Com o tempo, as embalagens vão-se deteriorar e transformar-se em pequenas partículas de plástico que acumulam poluentes tóxicos e que acabam por ser ingeridas por peixes, mariscos e golfinhos. Estas partículas – que vão persistir durante décadas ou séculos – “poderão ferir, asfixiar, causar úlceras ou a morte de animais marinhos”, salienta a Ocean Alive. Além disso, “parte das embalagens vem dar às praias de Setúbal, Tróia e Arrábida, constituindo também um risco para a saúde pública”.

Nos dias 12 a 14 de Agosto deste ano, durante a Festa da Nossa Senhora do Rosário de Tróia, a campanha regressou pela 25ª vez ao estuário, mais concretamente à Caldeira de Tróia. Um total de 66 voluntários responderam ao desafio e recolheram 1.746 embalagens de sal vazias e 1.102 quilos de lixo preso na vegetação. Falaram com 557 pessoas que acamparam junto à caldeira, num total de 110 acampamentos.

“Esta festa junta centenas de mariscadores e é, tipicamente, uma grande entrada de lixo no estuário”, diz Raquel Gaspar. “As pessoas acampam e deixam alcatifas, cadeiras, lixo orgânico, etc.” Mas desta vez as autarquias juntaram-se numa campanha de sensibilização. “Tínhamos estado na caldeira nas festas do ano passado e vimos uma grande diferença no comportamento das pessoas. Só registámos dois campistas que deixaram lixo para trás e alguns até parecia que tinham estado a limpar a areia”, acrescenta.

A Caldeira de Tróia é um dos pontos onde a campanha se concentra, porque é sítio de mariscagem e porque os ventos e as correntes empurram o lixo para ali. Esta é uma laguna costeira que enche e esvazia com as marés, tem um fundo lodoso e está rodeada de sapal e pinhal. Esta reentrância do estuário do Sado é considerada de grande importância ecológica e está integrada na rede de sítios prioritários para a conservação da natureza na Europa. “É considerada uma maternidade de vida marinha e oferece abrigo e alimentação a muitas aves marinhas”, como os pilritos, os fuselos, garças e mesmo aves migradoras como os mergansos.

“Quando começámos, havia mariscadores que enterravam as garrafas na areia. Hoje isso é uma prática do passado”, salienta a responsável.

Por exemplo, na zona da Eurominas, na margem Norte, não foram encontradas embalagens de sal, até Julho. “É uma vitória!”, disse Raquel Gaspar.

 

Embalagens de sal no Estuário do Sado. Foto: Ocean Alive

 

Uma das coisas que mudou no estuário do Sado é a maior disponibilidade de sítios para deixar o lixo. “Hoje há mais caixotes do lixo e foi instalado um ecoponto amarelo no Cais Palafítico da Carrasqueira”, exemplificou. “Mas acho que  pessoas optam por trazer de volta as garrafas não porque há caixotes do lixo mas porque agora estão sensibilizadas que não o devem fazer.”

Prova disso foram os 84 pescadores, mariscadores ou gentes da terra que, em Fevereiro, se juntaram à Ocean Alive e estiveram a limpar três quilómetros de margens do rio Sado, junto ao porto da Carrasqueira. Foram recolhidas 3.048 embalagens de sal vazias, 440 quilos de embalagens plásticas, 160 quilos de embalagens de vidro, 20 quilos de sucata, mais de uma tonelada de pneus usados e 4.960 quilos de resíduos indiferenciados.

Para o futuro, Raquel diz à Wilder quais as metas da campanha. “A nossa ambição é conseguir limpar as margens todas do estuário. Ainda não conseguimos ir a todos os sítios e limpar de acordo com o regime de ventos, as actividades da comunidade piscatória e as festas. O estuário só pode ser mantido limpo.” Raquel acrescenta que gostaria de “ter um grande corpo de voluntários para cobrir o estuário em todas as grandes marés do ano (quase uma por mês) e conseguir chegar aos mariscadores que não fazem parte da comunidade com a qual trabalhamos e que apenas ali vão pontualmente”.

De momento, há uma zona especialmente difícil de trabalhar por ser mais remota, a zona mais selvagem, de sapal. “É uma esponja de lixo, que se tem acumulado há décadas e décadas. Quando a maré enche, os plásticos passam por cima da vegetação e quando desce, ficam ali presos, como se esta fosse uma rede.”

“Todos os dias o mar traz lixo para o estuário.” Por isso, já há nova data para a campanha, dia 17 de Setembro, Dia Nacional de Limpeza de Praias. O objectivo será limpar os bancos de areia que se transformaram, ao longo do tempo, em pequenas ilhas na entrada do estuário.

Em 2014, o Programa Global Marinho e Polar da União Internacional de Conservação da Natureza (UICN) publicou um relatório sobre plásticos nos oceanos, no qual conclui que “o lixo plástico se tornou no problema mais grave que afecta o ambiente marinho”.

De acordo com esse relatório, entre 50 e 80% do lixo nas zonas costeiras do planeta é lixo plástico. “A sua presença foi detectada desde as profundezas dos oceanos às zonas costeiras de todos os continentes.” Os tipos de lixo mais encontrados são tampas de garrafas, garrafas, sacos, embalagens, copos, pratos e talheres e palhinhas. Em Setembro do ano passado, um estudo ao risco de ingestão de plásticos nas aves marinhas do planeta concluiu que 90% de todas as aves marinhas vivas hoje já ingeriram algum tipo de plástico.

A Ocean Alive é uma organização sem fins lucrativos que pretende “transformar comportamentos para a protecção do oceano, nomeadamente das pradarias marinhas do estuário, através da educação marinha e do envolvimento das comunidades costeiras locais”.

 

[divider type=”thick”]Saiba mais.

Raquel Gaspar ganhou este ano o prémio nacional Terre de Femmes, atribuído pela Fundação Yves Rocher. Leia a entrevista que esta bióloga deu à Wilder e conheça o projecto que quer transformar pescadoras em guardiãs do Estuário do Sado.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.