Xarroco. Foto: Raquel Vasconcelos

Os xarrocos do Tejo “cantam” o ano todo, mas estão a ser abafados pelo ruído dos barcos

Um novo estudo realizado por cientistas portugueses concluiu que a actividade das embarcações está a prejudicar a comunicação acústica desta espécie, afectando os seus comportamentos de reprodução.

Os xarrocos são característicos do domínio subtropical e podem ser encontrados principalmente entre o Golfo da Guiné e a Península Ibérica. A população mais importante no limite norte encontra-se precisamente no estuário do Tejo, onde esta é uma espécie comum, indicou Daniel Alves à Wilder. Este investigador está a desenvolver o doutoramento no cE3c – Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais e é o autor principal de um novo estudo publicado no Journal of Experimental Biology.

Xarroco. Foto: Raquel Vasconcelos

Apesar de serem apreciados em Setúbal, onde fazem parte da caldeirada, e de serem muitas vezes apanhados nas redes quando os pescadores andam em busca de outras espécies, estes peixes têm um baixo valor comercial.

Já para os cientistas, são “uma espécie muito utilizada para estudar a comunicação acústica nos peixes, e cujas características dos sons que os machos produzem estão relacionadas com a sua capacidade de atrair as fêmeas”, nota um comunicado do cE3c, ligado à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Para estudarem os efeitos do ruído dos barcos sobre a comunicação acústica desta espécie, Daniel Alves e outros cientistas do cE3c e do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (ISPA) começaram por avaliar até que ponto é que nessas situações os xarrocos deixam de se ouvir uns aos outros.

O que concluíram? “Enquanto que em condições normais a distância de perceção de sons por esta espécie varia entre seis e dez metros, na presença de ruído de barcos a distância diminui para entre dois e seis metros: os xarrocos precisam de estar significativamente mais próximos para conseguirem distinguir os sons emitidos entre si”, explicou Daniel Alves. “Esta redução na distância em que os indivíduos conseguem comunicar tem influência na reprodução da espécie, já que pode dificultar o encontro entre macho e fêmea.”

Uma sirene para atrair fêmeas e repelir intrusos

O som principal do repertório dos xarrocos chama-se sirene, revelou o investigador. “As funções deste som são semelhantes às desempenhadas pelo canto das aves, embora os repertórios destas sejam muito maiores.” No caso destes peixes, a “sirene” faz-se ouvir quando procuram “atrair fêmeas para os ninhos e para repelir possíveis intrusos que tentem ocupar” essas estruturas.

Os xarrocos costumam “criar” os seus ninhos entre ou debaixo das rochas, escavando o substrato. Para perceberem se a diminuição da capacidade auditiva afecta o comportamento destes peixes, os investigadores colocaram ninhos artificiais de xarroco numa zona entre marés, nas praias da Base Aérea do Montijo: foram instalados semicilindros de betão com cerca de 50 centímetros de comprimento, para cada um ser ocupado espontaneamente por um macho.

Nestas praias, onde normalmente existe pouco ruído de barcos, a equipa utilizou altifalantes para simular a presença de embarcações. Ao mesmo tempo, recorreram a hidrofones para registar a actividade em cada ninho.

Ninhos artificiais de xarroco. Foto: Marta Bolgan

Resultado? “Verificámos que os indivíduos param de sincronizar as vocalizações com os seus vizinhos e que diminuem o número de vocalizações produzidas na presença do ruído de barco”, esclareceu Daniel Alves, que também pertence ao grupo Fish Bioacoustics Lab (Laboratório de Bioacústica de Peixes, em português), tal como os restantes autores do novo artigo científico.

“Normalmente os machos tendem a alternar os sons que produzem com os dos vizinhos, minimizando a sobreposição entre os sons produzidos. Contudo, este padrão perde-se quando o ruído de barco está presente. Este último factor poderá justificar-se com o facto de a distância máxima de comunicação, de acordo com este trabalho, ser diminuída significativamente pela presença de ruído de barco.”

Cuidados a ter

“Estes resultados demonstram que o ruído dos barcos não passa despercebido por estes animais, reduzindo a distância a que os peixes podem comunicar entre si e afectando o seu comportamento”, acrescentou Manuel Vieira, co-autor deste estudo, a desenvolver o seu doutoramento no cE3c e no  MARE. 

Quanto à melhor forma de diminuir estes impactos, Daniel Alves acredita que o mais óbvio será “diminuir o ruído produzido pelos motores dos barcos, por exemplo, através de melhorias tecnológicas para reduzir o ruído por cavitação (provocado pelas bolhas formadas pelas hélices) ou da utilização de motores elétricos, bem como através da limitação da passagem de barcos em zonas de reprodução durante essas mesmas épocas de reprodução”.

Igualmente necessário é um estudo mais abrangente “dos impactos do ruído produzido pelo ser humano no meio ambiente”, indicou o mesmo responsável, lembrando que “existem muitas outras fontes de ruído subaquático produzido pelo Homem, como sondagem subaquática, construção, perfurações, entre outros”, mas o conhecimento científico sobre o impacto e predominância das mesmas é ainda limitado.

Para já, um dos próximos passos da equipa vai ser avaliar se os xarrocos ou outras espécies de peixes desenvolveram ferramentas para adaptarem a forma como comunicação quando há mais ruído.


Saiba mais.

Quer tentar ouvir as sirenes dos xarrocos no Estuário do Tejo? Daniel Alves sugere-lhe uma deslocação ao Cais do Seixalinho, localizado na Margem Sul:

“Os xarrocos utilizam as fendas entre e debaixo das pedras do cais para fazerem ninhos. Quando a maré se aproxima da baixa-mar, antes dos peixes ficarem expostos, mas com a coluna de água suficientemente baixa para tornar mais fácil ouvir os sons, torna-se razoavelmente fácil escutar as sirenes. Também por vezes se conseguem ouvir quando a maré está baixa e os ninhos expostos. Aí também conseguimos vê-los nas suas ‘tocas’.”

Pode também ouvir alguns sons de xarroco gravados por cientistas do Fish Bioacoustics Lab, aqui, incluindo as sirenes de dois machos e também o tamborilado, que parece ser usado em interacções territoriais para afastar outros peixes.


Por estes dias, a época de reprodução deste peixe de cabeça achatada e boca grande está a chegar ao fim. Fique a conhecer o que os cientistas já sabem sobre esta fase da vida dos xarrocos.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.