Planando sobre o Douro

Carla Guerreiro, professora universitária, escreveu um texto para a Wilder que tem como pano de fundo a sua terra de origem e de afectos, uma aldeia que fica no Parque do Douro Internacional. 

 

Daqui de cima vejo o Douro, sinto o ar fresco e puro a cheirar a estevas e urze, nas minhas asas e no meu bico, neste voo picado que faço para apanhar um pombo que voa lá em baixo perto do chão… Que frágeis são estas aves, mal chegam a levantar voo e nunca chegam a conhecer os espaços altos e o céu azul… Lastimo-as, mas ao mesmo tempo regozijo-me porque asseguram a minha subsistência…

Antigamente havia muitas perdizes que nas primaveras, quando as estevas e urzes ou torgas começavam a abrir-se em flores amarelas e roxas, tinham grandes bandos de perdigotinhos, tenros e saborosos com que as minhas ancestrais faziam grandes festins… Agora os tempos são outros e à falta de perdizes com fartura, sempre temos os pombos. Estes nunca chegam a conhecer nada para além dos limites do horizonte, enquanto a vastidão azul entre as arribas é toda minha.

Sou a rainha destes céus que, infelizmente, tenho de compartir com outras aves… Acham-se grandes voadores, mas são uns seres tristes que comem apenas o que os outros rejeitam e na sua necrofagia não sabem o que é o gosto da perseguição nem conhecem a adrenalina que dá a perseguição e a caça… Abutres do Egito e abutres pretos e grifos espreitam nos ninhos que fizeram nestas rochas milenárias que encaixam o Douro como uma moldura megalítica, impressionante, esmagadora e esticam os pescoços, quando me veem passar e soltar o meu grito, soberana incontestada deste reino maravilhoso, como poetas já lhe chamaram. 

 

duas águias no ninho
Foto: Lalo Ventoso/Wiki Commons

 

Só quando eu termino a minha caçada e me preparo para devorar a minha presa é que eles aterram, precavidos, cautelosos! Olham para mim, de lado, provavelmente com medo que as minhas sobras não lhes matem a fome e aproximam-se lentamente…Tenho de fazer valer os meus direitos e olho-os com o meu olhar mais penetrante, soltando o meu grito mais ameaçador… Regressam ao local onde poisaram, lentamente, à espera… Para poderem comer as sobras que eu não quis…

A seguir elevo-me por sobre as encostas graníticas e nada escapa ao meu olhar. Não admira que os humanos nos tenham como as mestras da observação, no nosso aquilino olhar…

Vejo as cegonhas pretas nos seus ninhos, alcandorados nas escarpas que ladeiam o rio. Ao contrário das suas primas as cegonhas brancas, elas não gostam nem se querem ao pé de gente (os humanos não são de fiar e disso têm dado muito boas provas ao longo da história…) e por isso gostam de habitar nesta zona, com pouca gente e longe do bulício que os humanos tanto gostam de criar. Os homens daqui apreciam-nas. Dizem que são úteis pois comem os bichos maninhos que infestam as terras agrícolas e como a gente daqui dá valor à terra, tão escrava ela é e dura de dar proveito e fartura! 

Parto a grandes golpes de asa, em direção ao planalto. Sobrevoo as aldeias espalhadas pela paisagem. Pequenos povoados graníticos, afastados uns dos outros, resistentes às durezas do tempo: invernos rigorosos e sóis escaldantes, dos “nove meses de inverno e três de inferno”, onde habitam homens e mulheres íntegros e de “uma peça só”, “d’antes quebrar que torcer” como, de resto, é esta região que escolhemos para viver, única e singular na sua dura e incomparável inteireza.

Só aqui o céu se espelha nas águas caudalosas ou serenas do Douro, com esta grandeza inaugural que tem a natureza em estado puro. E só aqui podia ser o reino das águias.

 

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Carla Guerreiro é professora-adjunta do Departamento de Português da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Bragança.