Borboleta noturna da espécie Spilosoma lubricipeda. Foto: João Nunes
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Rede portuguesa de Estações de Borboletas Nocturnas já registou mais de 500 espécies

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Saber onde estão e quando voam as borboletas nocturnas de Portugal é o objectivo da Rede de Estações de Borboletas Nocturnas. Desde que começaram em janeiro de 2021, os cidadãos que estão a registar estes insetos em 50 locais de amostragem, incluindo em quintais e varandas de Norte a Sul do país, já fizeram mais de 11.000 registos de 512 espécies. Os resultados de 2021 já estão publicados na plataforma GBIF (Global Biodiversity Information Facility).

A Wilder falou com João Nunes, coordenador do projecto de ciência-cidadã Rede de Estações de Borboletas Nocturnas (REBN), e com a restante equipa. Aqui contam como funciona esta rede de vários locais de amostragem dispersos pelo país onde, de uma forma coordenada, se faz a amostragem destes insectos com recurso a um método estandardizado baseado em armadilhas luminosas. Além de aumentar o conhecimento sobre as espécies de Portugal, esta rede – que recentemente passou a integrar a equipa de peritos do “Que Espécie é Esta?” – ajuda a reunir os naturalistas num objectivo comum.

Foto: Rede de Estações de Borboletas Nocturnas

WILDER: Quando e porquê começou esta a REBN a funcionar?

REBN: A Rede de Estações de Borboletas Nocturnas (REBN) começou a funcionar em Janeiro de 2021. Apesar de Portugal ter cerca de mais de 2.600 espécies de borboletas nocturnas conhecidas, os aspectos da ecologia e fenologia de muitas espécies são ainda mal conhecidos. Assim, achámos que um projecto de ciência-cidadã poderia ser a solução para uma amostragem em grande escala e de forma sistemática. Outro aspecto muito importante do projecto é a divulgação e sensibilização para a diversidade de espécies de borboletas nocturnas e o seu papel como bioindicador da qualidade dos habitats. 

W: Neste momento, quando estão prestes a fazer dois anos, quantas estações existem e onde se encontram?

REBN: Neste momento temos 50 locais de amostragem, que designamos de “Estações”. Estas estações estão distribuídas por todo o país e em vários habitats diferentes, que vão desde varandas em prédios inseridos em ambiente urbano até zonas dunares. Todos os habitats são interessantes de amostrar embora, por uma questão de facilidade de acesso regular, muitas estações estão localizadas em jardins e quintais. Uma característica demográfica do nosso país é também reflectida na distribuição das estações, já que muitas estão concentradas na faixa litoral, onde há uma maior concentração de população. Esta é uma tendência que gostaríamos de contrariar e estimular a criação de estações no interior do país, que é muito biodiverso.

Spilosoma lubricipeda. Foto: João Nunes

W: Qual o objectivo desta rede?

REBN: Um dos grandes objectivos da REBN é a recolha sistemática de dados sobre borboletas nocturnas em Portugal. Estes dados podem depois ser trabalhados de vários ângulos, mas de forma mais imediata é possível obter dados sobre a distribuição das espécies no território e períodos de voo. Pretendemos que a REBN seja um projecto de amostragem a longo prazo, de forma a trabalhar as tendências populacionais para as espécies mais comuns. Só com uma amostragem continuada no tempo, regular e padronizada é possível detectar variações nas populações de borboletas nocturnas. A REBN disponibiliza integralmente os dados que recolhe na Global Biodiversity Information Facility (GBIF), uma plataforma que agrega dados biológicos e que permite outros investigadores utilizarem os dados.

Ao integrarmos cidadãos que nunca tiveram contacto com as borboletas nocturnas estamos também a criar uma maior consciencialização para a diversidade de espécies e a necessidade de preservação dos habitats. Apesar de os dados serem muito úteis quando analisados em conjunto, há também uma outra dimensão local que é desafiante para os participantes, por exemplo, perceber quantas espécies visitam o seu jardim ou quintal.

W: Quem coordena as estações e de quem partiu a iniciativa?

REBN: A iniciativa para a criação deste projecto partiu do Helder Cardoso, ornitólogo e que se dedica a estudar borboletas nocturnas de forma amadora há 12 anos. Na sequência de amostrar durante vários anos na região Oeste, surgiu a ideia de tentar comparar dados com outros locais e seguiu-se o contacto com outros entusiastas das borboletas nocturnas.  Rapidamente a ideia evoluiu para a criação de um projecto de ciência-cidadã. Os moldes do projecto são muito próximos do que tem vindo a ser feito noutros países do norte e centro da europa, caso do Reino Unido, Holanda ou Bélgica. 

Foto: Rede de Estações de Borboletas Nocturnas

Neste momento o projecto é coordenado por um grupo informal de seis elementos (Ana Valadares, Helder Cardoso, João Nunes, João Tomás, Paula Banza e Thijs Valkenburg) e conta com o apoio de outras pessoas organizadas em pequenos grupos de trabalho, dedicados à edição do boletim informativo ou à divulgação do projecto. 

W: Em que consistem estas estações e como funcionam? 

REBN: A REBN é essencialmente uma rede de pontos de amostragem de borboletas nocturnas (Estações), com recurso a armadilhas luminosas não letais. Estas armadilhas são colocadas num local fixo e que, idealmente, não sofra muitas alterações de habitat. O princípio de funcionamento é muito simples: a lâmpada vai atrair as borboletas para dentro de uma caixa de retenção temporária. As borboletas ao entrarem, têm dificuldade em sair e vão ficar pousadas nas caixas de ovos vazias no interior. 

As armadilhas devem funcionar pelo menos uma vez por mês, onde a lâmpada é ligada ao final do dia e fica a atrair borboletas a noite toda para dentro da caixa de retenção. Na manhã seguinte a armadilha é visitada e procede-se à identificação e contagem do número de indivíduos por espécie e as borboletas são posteriormente libertadas. 

As amostragens decorrem durante todo o ano, já que muitas espécies estão apenas activas nos meses de inverno. 

Rhodometra sacraria. Foto: Ana Valadares

Mensalmente temos também a publicação de um boletim informativo (Borboletim). No boletim são abordados diversos temas relacionados com as borboletas nocturnas, incluindo artigos de identificação de espécies mais difíceis e também uma compilação dos dados do mês anterior. Qualquer pessoa pode subscrever o boletim gratuitamente e ficar a par do que se vai fazendo no projecto.

W: As pessoas comuns podem participar? Se sim, como? É preciso ter conhecimentos sobre estes insectos? 

REBN: A participação na REBN é aberta a todos, mesmo a quem não tem qualquer tipo de experiência prévia com borboletas nocturnas e a sua identificação. Basta ter vontade de aprender e descobrir o mundo natural. 

O primeiro passo para começar a participar é contactar a REBN de forma a podermos explicar como construir uma armadilha simples e onde a colocar. Criámos ainda várias ferramentas com o intuito de auxiliar quem está a começar incluindo um e-mail dedicado a dúvidas de identificação, um pequeno guia das borboletas nocturnas mais comuns e um grupo de Facebook. 

W: Na vossa opinião, qual a importância deste projecto?

REBN: Projectos de monitorização de invertebrados são algo de extrema importância no panorama actual para que possamos perceber e quantificar, a longo-prazo, as tendências nas populações destes organismos. O declínio dos insectos é uma problemática conhecida. Contudo, em Portugal não temos dados passados que nos permitam quantificar com rigor quanto perdemos até agora, ou quanto o cenário se modificou até agora. Projectos semelhantes à REBN já existem em alguns países da Europa. O projecto inglês já conta com mais de 30 anos de dados, o que permitiu constatar recentemente (“The State of Britain’s Larger Moths 2021 report”), entre outras coisas, a alteração dos padrões de distribuição de algumas espécies e uma generalizada queda na abundância. Este projecto pioneiro em Portugal permitirá, a longo-prazo, avaliar o estado das populações, a real fenologia e distribuição das espécies e a sua variação no tempo. A recolha de informação já começou, agora é a parte mais difícil, manter as amostragens. As borboletas nocturnas são um grupo usualmente utilizado neste tipo de estudos devido à facilidade de atracção destes animais.

Foto: Rede de Estações de Borboletas Nocturnas

W: Quais os principais resultados para já?

REBN: Após apenas um ano de amostragens completo, é difícil anunciar resultados muito elaborados por falta de relevância do componente tempo nos dados. Um ano de amostragens não é suficiente para avaliar tendências. Contudo, é de destacar a enorme massa de dados produzida que, no imediato, permitiu estender a área de distribuição conhecida de algumas espécies. Entre as 512 espécies registadas no projecto, o correspondente a mais de metade das macro-borboletas citadas para Portugal, em 41 foi possível aumentar a distribuição conhecida.

Foram angariados um total de 11.123 registos, o que por si só é um resultado surpreendente, fruto do trabalho de muitos cidadãos empenhados que possuem agora uma nova e recompensadora actividade.

W: Quais as espécies mais registadas?

REBN: Relativamente ao ano de 2021, as cinco espécies mais registadas ao nível de número de observações foram: Gymnoscelis rufifasciata (324), Eilema caniola (205), Hoplodrina ambigua (175), Idaea degeneraria (175) e Mythimna unipuncta (159). Já ao nível do número de indivíduos registados, as espécies mais contabilizadas foram Eilema caniola (1316), Agrotis puta (1060), Gymnoscelis rufifasciata (1019), Hoplodrina ambigua (805) e Rhodometra sacraria (745), sendo o pódio muito semelhante. Todas estas espécies são bastantes comuns em Portugal, por vezes mesmo em zonas urbanas, sendo previsível a sua predominância nos registos. No total, foram contabilizados 28.668 indivíduos.

Hyles euphorbiae. Foto: João Nunes

W: Qual o destino desses resultados?

REBN: O destino dos resultados vai-se tornando mais abrangente com a duração do projecto. A curto-prazo, o destino dos resultados passa principalmente por complementar o conhecimento de distribuição das espécies já existente. Os registos de 2021 em que isto se verifica serão publicados brevemente em revista científica, tendo a submissão do manuscrito já sido feita. Anualmente pretendemos também publicar todos os dados na plataforma GBIF (Sistema Global de Informação sobre Biodiversidade), de forma que os dados gerados possam ser utilizados livremente pela comunidade científica e não só. Todos os registos de 2021 foram recentes publicados, num total de 11.123 registos. Já a longo-prazo, pretende-se que os dados sejam utilizados de uma forma mais holística que permita aferir tendências globais e específicas de cada espécie, pelo menos das mais comuns. Para isso serão necessários alguns anos de trabalho, de forma a garantir que os resultados estatísticos representam as reais tendências e não variações anuais.

W: E como identificar borboletas nocturnas?

REBN: As borboletas nocturnas, tal como qualquer outro grupo de insectos e invertebrados, exigem um cuidado especial na sua identificação. Isto porque a diversidade existente nestes organismos é muito superior à observada, por exemplo, nos vertebrados, o que origina inúmeros casos de espécies morfologicamente pouco distintas entre si. Para além disso, são seres naturalmente pequenos, o que dificulta ainda mais a sua separação. Em muitos casos, a opinião de um especialista é necessária.

Contudo, entre os insectos, as borboletas são talvez a ordem mais fácil para se trabalhar ao nível das identificações. A existência de um padrão característico de cada espécie (mesmo que variável) garante diversidade morfológica suficiente para facilitar a tarefa, mesmo para um olhar menos experiente. Na REBN o grupo-alvo são as macro-borboletas nocturnas, que em si constituem perto de 1.000 das mais de 2.600 espécies de borboletas nocturnas registadas em Portugal. Nestas, a identificação passa muitas vezes por ser trivial, já que são espécies maiores e geralmente muito distintas entre si.

Mythimna unipuncta. Foto: Ana Valadares

A tarefa de identificação levada a cabo pelas estações de amostragem é auxiliada por parte do projecto de três formas: 1) Fornecimento de um guia fotográfico digital com as espécies mais comuns; este é principalmente útil nas primeiras abordagens ao tema; 2) Através de um email de apoio para o qual as estações podem enviar todas as dúvidas relacionadas com as identificações; 3) Através de um grupo restrito às estações na plataforma Facebook, onde são colocadas e esclarecidas dúvidas taxonómicas e metódicas.

Grande parte das espécies mais abundantes passam a ser facilmente reconhecidas pelos responsáveis das estações depois de algumas observações. Isto é potenciado pelo facto de as estações consistirem em pontos fixos de amostragem, ou seja, haverá naturalmente recorrência de várias espécies. Pormenores a ter em conta para uma correta identificação incluem a própria morfologia do insecto, principalmente o seu padrão, e o período de voo – espécies semelhantes podem ter períodos de voo diferentes. A comparação com imagens de espécimes correctamente identificados e o esclarecimento com os especialistas que coordenam o projecto em caso de dúvida será sempre a metodologia mais adequada.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.