Aguarelas, Grupo do Risco. Foto: Joana Bourgard

Seis coisas que todos os (bons) desenhadores naturalistas fazem

O Grupo do Risco levou a Wilder na sua mais recente expedição naturalista. Encontrámos 6 segredos que poderão salvar o artista que, afinal, há em nós.

  1. Perder o medo.

Este é o último dia da expedição. Onze ilustradores estão há uma semana no Vale do Sabor a desenhar e a pintar a natureza, debruçados sobre cadernos de campo e rodeados de lápis, pincéis, canetas e aguarelas. São o Grupo do Risco, coletivo de desenhadores, artistas e cientistas criado em 2007.

Oliveira num dos cadernos do Grupo do Risco. Fotografia: Joana Bourgard

São 08h00 no quartel dos Bombeiros Voluntários de Torre de Moncorvo. É lá que o grupo está alojado há duas noites. Antes já passou por Macedo de Cavaleiros, Mogadouro e Alfândega da Fé.

No café do quartel pedem-se torradas, sandes e galões. Sentamo-nos numa mesa com Pedro Salgado, ilustrador científico e coordenador do grupo, e perguntamos o que é preciso sabermos para começar a desenhar. “Há que perder o medo e não nos importarmos com o que vai sair”, diz o ilustrador e naturalista de 54 anos, cabelo e barba grisalhos e casaco polar em dois tons de cinzento. “É preciso quebrar o mito de que o desenho é só para algumas pessoas, que é um dom. O desenho é para todos.”

Ficamos a pensar nestas palavras. Quando a águia que desenhamos parece uma galinha ou o cogumelo uma alface, será que vale a pena insistir? “Há quem diga que não consegue fazer uma linha direita. Mas a nossa cabeça é mais importante do que as nossas mãos”, acrescenta.

Pedro Salgado é considerado o melhor ilustrador científico de peixes marinhos do país, é responsável pela formação de uma nova geração de ilustradores científicos em Portugal e desenha há mais de 30 anos. “Mesmo hoje tenho sempre medo antes de começar um desenho. Mas assim que começo, tudo isso desaparece”.

Ainda estamos a pensar nesta conversa quando subimos para o autocarro de 20 lugares que vai levar o Grupo do Risco a outro recanto do vale do Sabor. O nome deste colectivo de ilustradores pretende homenagear a Casa do Risco, escola setecentista de desenho científico português que existiu no Jardim Botânico da Ajuda, em Lisboa. Há 300 anos, os chamados “riscadores” saíam em expedições para documentar em desenhos e aguarelas a fauna e a flora no período áureo da ilustração científica portuguesa. Hoje, onze dos 25 membros do Grupo do Risco estão em Trás-os-Montes para documentar o património que vai ficar submerso pelas águas da barragem do Baixo Sabor.

Alguns dos elementos do Grupo do Risco a observar o vale do Sabor. Fotografia: Joana Bourgard

 

  1. Saber que não há desenhos errados.

O autocarro sobe a serra e deixa o vale do Sabor ficar sossegado lá em baixo. Do lado de lá da janela passam melros e pegas azuis. Saímos da estrada e entramos num caminho de terra batida. Avançamos lentamente e aos solavancos.

Paramos, por fim, debruçados sobre o vale da Vilariça e do Sabor.

Nádia Torres monta a sua cadeira desdobrável e abre o caderno A4 de capa preta sobre os joelhos. Escolhe o ângulo e começa a desenhar.

“Tudo começa quando desaprendemos a desenhar”, explica a artista plástica de 52 anos que vive em Mértola. “Quando somos crianças, dizem-nos que devemos colorir sem sair dos contornos, que o Sol tem de ser amarelo. E se não fizermos igual, então não está correcto. Isso cria frustração porque mostra às crianças aquilo que não conseguem fazer”. Nádia quando ri inclina a cabeça para trás, como se o riso tivesse peso. Não nos parece nada frustrada ao alternar o olhar entre a paisagem e o caderno. “Desenho sempre aquilo que é mais difícil, para conseguir evoluir, e digo a mim própria: ‘vamos ver se consigo fazer isto’. Há desenhos de que não gosto mas isso faz parte”.

Susana Lemos, 40 anos, está sentada um pouco mais à frente de Nádia. De gorro de lã cinzento e óculos escuros, esta artista plástica que veio de Lisboa tem ao seu lado esquerdo Lúcia Antunes e ao seu lado direto a caixa de aguarelas. “Apesar de tudo, temos de aceitar que as coisas nem sempre nos saem como queremos”. E não é isso que afecta a enorme paixão que diz ter pelo desenho de campo. “É uma componente muito importante da minha vida.”

  1. Escolher algo que nos agrade e interesse.

Em todas as expedições que o grupo já fez – às Berlengas, Douro Internacional, Ria Formosa, Amazónia (Brasil), ilha da Madeira, Parque Nacional de Doñana (Espanha) e Serra do Caramulo – acontece sempre o mesmo: ao chegar a um sítio é preciso escolher algo que lhes agrade para desenhar. E como podem ser desenhos de 10 minutos mas também de duas horas, convém ser algo que lhes interesse.

Pedro Salgado a desenhar a grafite. Fotografia: Joana Bourgard

Esta manhã, Pedro Salgado já escolheu o seu lugar e senta-se numa determinada pedra. Assenta o caderno firme nos joelhos e coloca o estojo preto ao lado. Tira a lapiseira mais grossa que tem. Vai desenhar a encosta da serra com o vale lá em baixo. Quando faz o esboço das primeiras pedras e as suas formas e sombras, ainda ouve uma perdiz ao longe. Instantes depois, tudo muda e o ilustrador entra num mundo onde só cabem o risco e o papel. Desaparecem as borboletas brancas e castanhas que dançam aos pares entre as ervas aos seus pés e deixam de se ouvir os fiapos de conversas do grupo ao longe. A pastora de vara na mão, os seus três cães e os chocalhos das ovelhas passam ao seu lado mas é como se tivessem passado do outro lado do mundo.

Passados cerca de 40 minutos, Pedro Salgado regressa à encosta da serra. A paisagem passou para o papel, a mando da lapiseira grossa, e as folhas do caderno ficaram cheias com o vale da Vilariça.

 

 4. Observar.

Pedro Mendes no cimo da serra e uma pastora com o seu rebanho. Fotografia: Joana Bourgard

Às 11h30, o grupo está de novo a caminhar, serra abaixo, em direcção a um lugar chamado Baldoeiro, junto à igreja de São Mamede, hoje em ruínas. Aqui há lírios púrpura e flores amarelas. E caixas de aguarelas abertas. Nádia, João, Delfim, Pedro Salgado, Marco e Pedro Mendes trabalham concentrados. Uns estão sentados, outros de pé, alguns com peças de roupas atadas à cabeça para se protegerem do Sol.

João Catarino está sentado numa pedra a trabalhar na sua aguarela. Tira o excesso de água pressionando com desvelo um lenço de papel contra o seu céu azul de tinta.

João Catarino desenha os seus colegas no cimo da serra. Fotografia: Joana Bourgard

Aos 48 anos, João Catarino não tem problemas em reconhecer que tem um vício: desenhar em cadernos. Faz parte do Grupo do Risco desde Maio de 2009 e é professor de desenho, designer gráfico e ilustrador.

“No nosso dia-a-dia estamos impregnados de aceleração e não conseguimos desligar. Com o desenho concentras-te de forma quase hipnótica”, explica. “O desenho cresce como uma árvore, no tempo que demorar. Podemos ver muito menos coisas, mas muito mais de cada coisa”, acrescenta.

Este “ver bem visto”, diz Pedro Salgado, “é o que nos faz passar da fase em que desenhamos apenas os símbolos das coisas para a fase em que desenhamos mesmo aquilo que estamos a ver”. Nessa forma especial de nos envolvermos com a natureza, “apercebemo-nos de coisas que, se não estivéssemos a desenhar, não veríamos”.

Pedro Salgado explica como se passa uma paisagem para o papel. Fotografia: Joana Bourgard

 

  1. Desenhar muito.

Cláudia Baeta, ilustradora e designer gráfica de 44 anos, senta-se no chão a desenhar um penedo, com uma lapiseira rosa choque e o estojo castanho aberto nas ervas onde crescem pequenas flores amarelas e rosa. Trabalha com dois pincéis de água, um na mão direita e o outro fixo da boca; a mão esquerda segura na caixa de aguarelas. Desde que chegou ao Vale do Sabor tem desenhado bastante. Os seus cadernos têm freixos sem folhas, ramos de amendoeira, paisagens, um moinho a aguarela, oliveiras retorcidas e enlaçadas.

Lúcia Antunes, ilustradora e designer gráfica com 29 anos, está à sua direita, de pernas cruzadas – “é como me dá mais jeito, para apoiar o caderno” – e casaco castanho atado à cabeça. Desenha o mesmo penedo com uma caneta Bic preta. No seu caderno há esboços rápidos feitos no carro porque tinha começado a chover e há desenhos maiores e mais elaborados que quer acabar em casa. O tamanho do caderno depende daquilo que a paisagem pedir e do tempo que se tem. “Às vezes, uso o caderno que tenho à mão”.

“O desenho depende muitíssimo da dedicação de cada um”, diz Pedro Salgado. “É preciso insistir e o ideal seria desenhar todos os dias. Sem darmos por isso a mão ganha um à-vontade próprio”.

O desenho depende da dedicação de cada um, diz Pedro Salgado. Fotografia: Joana Bourgard

 

  1. Ver os cadernos dos outros.

À mesa do jantar no restaurante, todos querem ver os desenhos dos outros. Os cadernos vão passando de mão em mão por cima da salada de frutas, da mousse de maracujá, dos cafés e dos pratos empilhados com o que restou das doses de febras e de bacalhau com natas.

“Não me lembro onde é isto…”, diz Cláudia, olhando para uma paisagem da margem do rio Sabor. “Espera, eu conheço esta pedra”, diz Pedro Salgado. “Também a desenhei. É o olho do desenho em acção”, brinca. “Uma das razões pelas quais este grupo é especial é o facto de ninguém esconder nada de ninguém; quando estamos a desenhar é normal surgirem problemas a resolver. É muito importante podermos ver que soluções e abordagens os outros usaram para ultrapassar os mesmos problemas. Estamos sempre a aprender”, diz Pedro.

César Figueiredo mostra uma página do seu caderno. Fotografia: Joana Bourgard

Quanto a nós, a partir de agora vamos passar a andar com um caderno de campo na mochila.

Agora é a sua vez

Se até gostava de experimentar os lápis e pincéis lá de casa mas não sabe bem por onde começar, inspire-se no site do Grupo do Risco e nos desenhos das suas expedições.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.