Bufo-real (Bubo bubo). Foto: Dick Daniels/Wiki Commons

Serra de Monchique, um hotspot de espécies emblemáticas

Carvalhos relíquia, águias, lontras, peixes de rio, escaravelhos, borboletas e flores fazem da Serra de Monchique um hotspot para a natureza. Nelson Fonseca, naturalista local que conhece a serra como poucos, ajuda-nos a perceber por que razão esta região é tão importante no país e na Europa.

 

Quando falamos ao telefone com Nelson Fonseca, 38 anos e arquitecto paisagista de Portimão, já terão ardido cerca de 20.000 hectares da Serra de Monchique. As chamas alastram-se para a Serra de Silves, impulsionadas pelo vento forte. No terreno estão mais de 1.200 operacionais, apoiados por 375 veículos e 19 meios aéreos.

Há vários anos que Nelson Fonseca percorre a Serra de Monchique, na pele de um “naturalista curioso, à procura plantas e insectos”. Nas últimas horas, tem visto na televisão as chamas chegar a muitos dos locais que conhece.

“Ontem à noite vi que o fogo passou pelo troço da ribeira de Boina, em Caldas de Monchique, que é o único local conhecido em Portugal onde a libélula Zygonyx torridus se reproduz. E se o local de reprodução desta libélula não ardeu, ardeu o sítio onde caça e se alimenta”, contou esta tarde à Wilder.

A Serra é também a casa para inúmeras outras espécies de insectos que, abrigadas neste cantinho com condições climáticas diferentes do resto do Sul do país, se foram diferenciando e hoje serão sub-espécies ou mesmo espécies endémicas.

Monchique – serra cujo ponto mais elevado, a Fóia, tem 902 metros de altitude – “é uma ilha ecológica com uma dimensão relativamente grande, com altitude e com humidade superior à envolvente, pela sua proximidade do mar”, explicou Nelson Fonseca. Há várias espécies que “acabam por se desenvolver em subespécies”. Tal é o caso de um bicho-pau e de um saltão, que só existem na zona da Fóia.

A importância de Monchique é reconhecida à escala europeia, com 76.000 hectares classificados como Rede Natura 2000 e como IBA terrestre (Important Bird Area), esta última pela federação internacional Birdlife, da qual faz parte a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (Spea).

Na serra ocorrem espécies prioritárias para a Europa. Como a borboleta nocturna Callimorpha quadripunctaria, em voo nesta altura do ano. “Ainda nunca vi essa borboleta mas sei que já foi observada junto a algumas das linhas de água da serra”, comentou Nelson Fonseca.

Monchique é também especialmente importante para as aves de rapinas, tanto diurnas como nocturnas. “Ali ocorrem os poucos casais de açores (Accipiter gentilis) do Algarve”, salientou. Além disso, a serra tem um dos núcleos populacionais mais importantes do país de águia-de-Bonelli (Hieraaetus fasciatus). Naquela serra, estas águias fazem ninho em árvores de grande porte.

 

águia-perdigueira, de frente
Foto: Paco Gómez/Wiki Commons

 

De acordo com a informação referente à IBA, “este local reúne ainda habitats apropriados para a nidificação de águia-cobreira (Circaetus gallicus) e de bufo-real (Bubo bubo), este com locais de nidificação na Ribeira de Odelouca, por exemplo”.

A área ocidental da serra pode ser zona de passagem para espécies planadoras e de passeriformes migradores, como o melro-das-rochas que, segundo Nelson Fonseca, é um visitante regular na Fóia no Outono.

Nelson Fonseca lembrou ainda os lagartos-de-água (Lacerta schreiberi), as lontras (Lutra lutra) e a boga-do-Sudoeste (Chondrostoma almacai), espécie que só existe nas bacias dos rios Mira e Arade.

No mundo da Botânica, a serra tem uma vegetação única. Entre este património natural estão os adelferais (Rhododendron ponticum), os zimbrais, medronhais, urzes, a flor Centaurea fraylensis – um endemismo lusitano – e bosquetes de loureiros (Laurus nobilis), amieiros (Alnus glutinosa), freixos (Fraxinus angustifolia), carvalho-português (Quercus faginea), carvalho de Monchique (Quercus canariensis), castanheiros (Castanea sativa), salgueiros-brancos (Salix alba), choupos-brancos (Populus alba), sobreiros (Quercus suber) e azinheiras (Quercus rotundifolia).

“A Serra só por si é um elemento de biodiversidade extraordinário para o país, tanto ao nível dos insectos como às aves e à flora”, salientou.

E agora?

Nelson Fonseca já pensa em regressar à serra para tomar o pulso aos danos e à resiliência da natureza. Nas suas contas, o fogo poderá destruir entre 25 a 30 mil hectares.

“As espécies das linhas de água serão as menos afectadas. Por exemplo, para a boga-do-Sudoeste, maior ameaça do que o fogo é a poluição das suiniculturas”. As espécies das ribeiras e barrancos “têm alguma mobilidade e os amieiros nas margens ardem pouco”.

“A nossa flora está habituada ao fogo”, disse, salientando que “haverá espécies que até vão beneficiar, com a eliminação da concorrência”, como uma espécie endémica de dente-de-leão. Neste momento, as plantas já não estão em flor; as sementes já estão no solo e na próxima Primavera poderão germinar, gozando da ausência de arbustos, por exemplo.

 

 

A maioria das aves de rapina, como o grande bufo-real, já tem as crias com capacidade de voo e capazes de escapar às chamas. “As crias nascem muito cedo, a partir de Janeiro. Hoje, as crias já são quase idênticas aos pais”.

Ainda assim, a curto prazo, as aves de rapina poderão ter mais dificuldades em alimentar-se, com a possível redução das suas presas naturais, como o coelho-bravo. Mas, por outro lado, as perdizes poderão ficar com mais habitat. “Isto não é nada linear. Há muitas vertentes a analisar e a natureza é resiliente. O que é linear é a perda de vidas e de bens. Os maiores danos são sociais”.

Mas há outras espécies que poderão ser mais afectadas. Como os carvalhais e os insectos, como o gafanhoto da Fóia, que não têm grande capacidade de fuga.

Nelson Fonseca acredita que a maioria das espécies de Monchique vai beneficiar ou recuperar relativamente.

O grande problema é a falta de gestão desta área de importância natural. “O plano sectorial da Rede Natura 2000 pouco ou nada trouxe. Não é área protegida nem deixa de ser. Ninguém quer saber e faltam meios”, lamentou. “A gestão activa do património natural não existe.”

No dia-a-dia, o que conta é o “carinho que as pessoas que nasceram e vivem na serra sentem pelo lugar”. “Quando ando a fotografar aves ou à procura de insectos e flores, por vezes as pessoas páram e dão-me dicas dos melhores sítios onde procurar. Eles podem não saber os nomes científicos das espécies, mas sabem mais sobre as suas formas de vida do que muitos especialistas”.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.