À volta de duas imperiais. Momentos admiráveis nas planícies alentejanas

De regresso ao Baixo Alentejo, numa terra rica em património e natureza, António Heitor foi surpreendido por um encontro inesperado.

Poderíamos pensar que me teria perdido bebendo dois copos de cerveja, mas não, estou mesmo a falar das “imperiais” e majestosas águias-imperiais.

Começa esta pequena história nas planícies do Baixo Alentejo, por caminhos entre Aljustrel, Castro Verde e Mértola. Este território foi desde sempre de especial relevância para todos os povos e civilizações que ocuparam a Península, desde os primeiros iberos, passando pelos império romano e pelo Al-Andaluz, até aos nossos dias. O solo rico em metais e a produção pecuária e de cereais, aliados à proximidade com o porto de Mértola, foram as principais razões para tal importância. Assim, não é de estranhar a diversidade e riqueza do património histórico e cultural da região, palco de diversos conflitos e batalhas, de entre as quais se destaca a batalha de Ourique, considerada um dos marcos da fundação de Portugal.

Este uso milenar moldou as paisagens da região e transformou-as em planícies de pastagens, de campos cerealíferos e de montado de sobreiro e azinho. São estes os habitats de abetardas, sisões, grous, cortiçóis e de grandes rapinas. Todas estas populações se adaptaram às dinâmicas das actividades rurais.

Cegonhas-brancas (Ciconia ciconia). Foto: António Heitor

Da última vez que ali regresso, a volta começa por Aljustrel. A neblina no ar pinta os campos agrícolas como paisagens místicas, até porque ao fundo começo a ver um bando de aves altas e elegantes por entre as curvas de um campo lavrado. Algumas cegonhas e outros tantos grous procuram alimento, tirando proveito do trabalho do agricultor que lhes facilitou a vida.

Aproveitando as estradas menos movimentadas, é possível atravessar vastas áreas de pastagens e campos de cereal, com tonalidades desde o verde ao castanho, fruto do grau de desenvolvimento da vegetação. Este cenário é o ideal para a camuflagem. É preciso parar e procurar com atenção por cortiçóis, sisões, abetardas e alcaravões, todos eles bem adaptados a esta vida essencialmente “de chão”. Quando os encontro, fico algo descansado com a acuidade da minha visão. Começa a surgir um padrão que me deixa curioso, pois ver pombos, perdizes, lebres, coelhos e outros pequenos roedores só pode significar uma coisa … onde há presas, há predadores. 

E de facto, é o que acontece. Uma águia-de-asa-redonda foge à frente de cinco milhafres-reais e percebo a urgência do voo do pobre búteo tentando fugir aos milhafres. Olho sempre com atenção para as aves com o intuito de procurar algo mais. Um dos milhafres está marcado nas asas e é bem visível uma marca amarela com a letra “Z”. Sei hoje que se trata de um milhafre-real libertado no âmbito do projecto LIFE Eurokite no passado mês de Junho. Enviei o registo para a AMUS (Acción por el Mundo Salvaje), parceira desse LIFE, e assim soube que se trata de uma fêmea que passou o Inverno no Alentejo e que de momento já se encontra em Espanha, na Sierra de Aracena e Picos de Aroche.

Milhafre-real (Milvus milvus) anilhado. Foto: António Heitor

Mas então e as imperais? Estas grandes rapinas não são fáceis de encontrar e é preciso estar atento a todos os vultos e movimentos. Por cima de um monte agrícola, noto algo a voar por detrás da única árvore do monte. Este vulto escuro muda de direcção e cruza a estrada onde estou, entretanto tendo parado em segurança na berma. As manchas brancas nos ombros comprovam a sua identidade, uma águia-imperial e um adulto. Já ganhei o dia, que momento admirável!

Esta enorme rapina ganha velocidade e começo a ouvir vocalizações ao longe, mas não me parece que o som venha do adulto. Vejo ao longe um segundo vulto, mais claro, mais ou menos na direção das vocalizações. A águia que tinha visto sobe um pouco e ataca a segunda águia, ficando eu com a noção que lhe chegou mesmo a bater nas costas. Depois deste ataque, a “imperial” regressa na minha direcção e rapidamente volta a passar por mim.

Águia-imperial adulta (Aquila adalberti). Foto: António Heitor

É então que reparo que o segundo vulto é na verdade outra águia-imperial, que ao aproximar-se da estrada decide pousar num poste mesmo à beira do meu carro. Trata-se de uma ave jovem, possivelmente nascida no ano anterior. Em resumo, não foi apenas um momento, mas foram sim vários momentos admiráveis. Não sei se a minha interpretação da cena estará correcta, mas isso pouco me importa, pois irei sempre lembrar-me deste episódio como tratando-se-de um progenitor que decidiu dar uma lição à sua cria, pois estava na hora do “puto se fazer à vida” e ir procurar o seu território. A vida selvagem não é um mar de rosas.

Juvenil de águia-imperial-ibérica (Aquila adalberti). Foto: António Heitor

E assim, pelos vistos, Castro Verde continua a ser palco de grandes batalhas … Por tudo isto e muito mais, sempre que posso visito a região em busca de momentos admiráveis, que invariavelmente acontecem.

Proteger, valorizar e conservar a nossa história, as nossas tradições, a cultura e os valores naturais deve ser um desígnio de todos. Eu cá confesso-me cada vez mas Naturalmente Rural.


Nascido em 1975, António Cláudio Heitor é licenciado em Engenharia Florestal pelo Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa e tem desenvolvido a sua actividade profissional centrado em questões florestais, de promoção do modelo cooperativo, de desenvolvimento rural, de gestão de recursos naturais, impacte ambiental e cinegéticas.

É técnico florestal e de recursos naturais da CONFAGRI desde 2003. Paralelamente, tem participado em trabalhos de consultoria na área florestal, agrícola, ambiental e de avaliação de políticas.  É auditor de Sistemas de Certificação Florestal Sustentada, no âmbito dos sistemas PEFC e FSC. É também guia de observação de fauna e flora no EVOA e na Companhia das Lezírias. Recentemente iniciou um projeto de comunicação e imagem, o Naturalmente Rural, que tem por objectivo manter os nossos valores rurais e naturais vivos.

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