Brigadas de voluntários estão a ajudar a ave mais emblemática dos Açores

De 1 de Outubro a 15 de Novembro, as ilhas açorianas estão envolvidas na missão de resgatar os cagarros juvenis que tentam voar pela primeira vez. Um trabalho que já dura há 25 anos.

Por estes dias, os juvenis de cagarro (Calonectris borealis) que nasceram este ano estão a sair dos ninhos para o primeiro voo em direcção ao oceano. Só regressarão quando tiverem idade para se reproduzir, dentro de sete anos. Até lá, o oceano será a sua casa.

Mas estes primeiros voos são um enorme desafio. Muitas aves confundem a iluminação pública das povoações com a luz da Lua e desorientam-se, acabando por cair nas estradas, parques de estacionamento, campos desportivos, incapazes de encontrar o mar.

Foto: Airam Rodríguez (Estación Biológica de Doñana CSIC)/WikiCommons

Por isso, todos os anos, a Direcção Regional dos Assuntos do Mar promove por esta altura a Campanha SOS Cagarro, com o apoio de várias entidades e de cidadãos que querem ajudar.

“O grande objetivo da Campanha SOS Cagarro é a conservação desta espécie de ave marinha, tão característica do Arquipélago dos Açores”, explicou à Wilder Filipe Porteiro, diretor regional dos Assuntos do Mar do Governo Regional dos Açores.

A campanha realiza-se sempre nesta altura do ano porque é quando “termina a época de reprodução e os cagarros nascidos no ano saem do ninho pela primeira vez para o seu primeiro voo oceânico”.

Todos os anos, são organizadas brigadas públicas e científicas (estas desde 2016), envolvendo cidadãos e entidades públicas e privadas de todas as ilhas, que resgatam os cagarros juvenis em dificuldades.

“Grupos organizados saem à noite para percorrer diversos locais das ilhas em busca de cagarros que necessitem de ser resgatados”, explicou Filipe Porteiro. Estas brigadas são organizadas por organizações não governamentais, associações e empresas. Mas são os Parques Naturais de Ilha que coordenam os trabalhos no terreno.

Além disso, qualquer pessoa pode salvar um cagarro ou alertar os Vigilantes da Natureza, através da linha SOS Ambiente, para a existência de aves caídas, pois estes profissionais vão resgatá-las onde elas estiverem.

“Este ano, no site da campanha SOS Cagarro, é possível encontrar uma aplicação dedicada ao registo, em tempo real e georeferenciado (coordenadas GPS), de cagarros encontrados no terreno. A base de dados assim criada permite conhecer melhor a distribuição espacial deste fenómeno.”

Os cagarros salvos devem ser entregues diretamente a um Vigilante da Natureza ou em pontos definidos, como o Hotel do Cagarro, os postos de comando da PSP e da GNR ou em quarteis de bombeiros. O SOS Cagarro tem um kit e caixas próprias para a recolha e transporte de cagarros.

A grande maioria dos cagarros salvos são anilhados por anilhadores credenciados (dos Parques Naturais ou da Universidade dos Açores), para que estas aves possam ser identificadas numa possível recaptura.

Como resultado, hoje sabe-se muito mais sobre este problema e o que deve ser feito para mitigar os efeitos nefastos da poluição luminosa sobre os cagarros juvenis. “Por exemplo, diversas entidades apagam neste período a iluminação em pontos críticos para estas aves.”

Mas não são só apenas os residentes nas ilhas que participam na campanha. “Ultimamente, a SOS Cagarro tem também alcançado uma dimensão turística, envolvendo visitantes das ilhas que têm gosto e prazer em se envolverem nesta campanha pública de conservação da natureza.”

Este ano, porém, o número de cagarros juvenis resgatados na campanha poderá ser diferente. Tudo por causa da passagem do furacão Lorenzo, que atingiu os Açores no início de Outubro.

“O impacto brutal do furacão nas zonas costeiras, causando a erosão acelerada de arribas e falésias que, em alguns locais, recuaram meia dúzia de metros, teve também este efeito colateral em centenas de cagarros juvenis que ainda estavam nos ninhos”, disse Filipe Porteiro.

“Dos dados que temos, o Lorenzo vitimou mais de 700 aves (contabilizadas), sobretudo nas ilhas do Pico e do Faial. Ainda não se sabe ao certo o efeito desta mortandade na população nidificante, mas espera-se que não seja significativo no total da região, excepto nas colónias das duas ilhas afetadas, que poderão demorar a recuperar”. 

No final da campanha, quando estiverem compilados todos os dados, os responsáveis esperam poder avaliar a escala do impacto nestas aves. “Veremos se as brigadas permitirão verificar alterações no número de cagarros regatados nas imediações das colónias nas costas sul do Pico e do Faial.”

“Nos Açores todos conhecem e reconhecem esta ave como sua”

O cagarro é a ave marinha mais emblemática do arquipélago dos Açores. As aves que nidificam nos Açores e na Madeira representam 75 a 80% da população mundial da espécie.

Foto: JardimBotanico/WikiCommons

“Todos os anos, dezenas de milhares de cagarros voltam aos Açores, no início da Primavera, para cortejar, acasalar, reproduzir e criar os seus pintos desse ano”, explica Filipe Porteiro.

E ainda que os juvenis só voltem quando são adultos, após cerca de sete a oito anos, “os adultos retornam todos os anos a estas ilhas, durante cerca de 30 anos, para se reproduzirem; machos e fêmeas formam casais monogâmicos e supostamente voltam à terra onde nasceram”.

“Durante séculos, os cagarros foram explorados para alimentação, extração de penas e de óleo. Felizmente, a consciência ecológica instalou-se e hoje a preocupação é a conservação destas e das outras aves marinhas que nidificam nos Açores.”

“No mar, os pescadores de atum, com salto e vara, usam-nos como indicadores da presença de cardumes destes peixes migradores. Nos Açores todos conhecem e reconhecem esta ave como sua.”

E “as paisagens sonoras noturnas criadas por estas aves marinhas são inconfundíveis. Todas as noites, em redor das colónias de nidificação, machos e fêmeas interagem intensamente e com um canto único, diferente entre os sexos, que nos remete para ambientes pré-históricos, longínquos, quando ainda não havia homens por cá”.

Hoje, “não deve haver neste arquipélago jovem ou adulto que não conheça o cagarro, a necessidade da sua proteção e a Campanha SOS Cagarro”.

Este é um dos resultados de 25 anos de campanha. Mas não o único. O maior sucesso da campanha, na opinião de Filipe Porteiro, foi a possibilidade de “salvar muitas dezenas de milhares de cagarros juvenis, que de outra forma teriam morrido, atropelados nas estradas, à fome em sítios fechados e recônditos sem acesso ao mar, ou predados por cães, gatos ou furões”.

Além disso, também já se conhecem quais as áreas onde há mais quedas de juvenis e quais os pontos mais problemáticos. Nesses locais, durante a campanha, várias entidades reduzem a iluminação para não desorientar os cagarros juvenis.

Poluição luminosa, a maior ameaça

Hoje não se sabe ao certo qual a dimensão da população de cagarros nos Açores.

O facto de esta ser uma espécie noturna, com uma distribuição no arquipélago muito vasta, com ninhos em toda orla costeira, muitas vezes em falésias inacessíveis, dificulta o trabalho de monitorização.

Em 1996, o ornitólogo Dr. Luis Monteiro, desenvolveu um método de contagem de aves quando estas formam jangadas no mar, e estimou que nos Açores haveria 188 mil casais de cagarros.

Em 2020 a Direcção Regional açoriana pretende fazer um censo regional destas aves e avaliar a situação da população, adiantou Filipe Porteiro.

O que se sabe é que a espécie enfrenta várias ameaças, entre as quais a mais preocupante é a poluição luminosa, segundo o responsável.

“Cada vez mais, nas nossas ilhas, as cidades e freguesias encontram-se fortemente iluminadas e ainda não há a preocupação para a utilização de lâmpadas e luminárias que minimizem os efeitos nefastos da poluição luminosa; muitas espécies selvagens e em especial as aves marinhas, que usam as estrelas e os astros como guias de migração, são as mais afetadas.”

Na sua opinião, “é necessário aumentar a consciencialização sobre este problema e encontrarem-se soluções, entre as entidades competentes, para diminuir a poluição luminosa e seus efeitos na biodiversidade”. 

O problema tem sido estudado através do projeto Luminaves, que visa diminuir os impactos da poluição luminosa sobre as aves marinhas da Macaronésia mais sensíveis a este problema, nomeadamente o cagarro e outras aves similares (procellariformes).

Este projeto, que conta com a participação de entidades dos três arquipélagos Macaronésicos (Açores, Madeira e Canárias), centra-se na conservação de espécies de aves marinhas ameaçadas às escalas regional, nacional e internacional por poluição luminosa. “Estas aves nidificam nas franjas costeiras das ilhas e em ilhéus dos três arquipélagos, muitas vezes em áreas protegidas da Rede Natura 2000, mas também em zonas turísticas, residenciais ou industriais, onde a poluição luminosa é maior e a necessidade de proteção mais exigente.”

Outro dos problemas é o lixo marinho. Para tentar saber mais sobre esta ameaça está a decorrer um projecto com a Universidade dos Açores / IMAR. “Desde há vários anos que os juvenis de cagarros encontrados mortos durante a Campanha são guardados para posterior análise dos seus conteúdos estomacais”, acrescentou.

“Por incrível que pareça, cerca de 90% dos cagarros juvenis têm pequenas partículas de plástico no seu estômago, numa altura que ainda nem sequer se alimentaram diretamente no mar. Os pais ingerem estas partículas e trazem-nas misturadas com alimento processado disponibilizando-as aos filhos.”

Além da SOS Cagarro e destes projectos de investigação, há mais trabalho a ser feito para conservar esta espécie emblemática.

Ilhéu de Vila Franca. Foto: José Luís Ávila Silveira/Pedro Noronha e Costa/WikiCommons

Ao longo do ano, está a ser recuperado habitat de nidificação em vários ilhéus, como o de Vila Franca e no Corvo, numa parceria entre os Parques Naturais de Ilha e a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) e a Universidade dos Açores.

Isto apesar de as colónias mais significativas estarem classificadas como Zonas de Proteção Especial da Rede Natura 2000 e estarem integradas nos Parques Naturais de Ilha.

Além disso são feitas anilhagens para conhecer melhor a ecologia e o comportamento da população e assim melhor desenhar medidas que contribuam para a conservação da espécie.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.