Foto: Paulo Catry
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Crónicas naturais: Gelo e tundra

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“O Ártico tem o condão de espalhar viajantes (e desejos) por praticamente todas as terras e todos os mares do planeta”, conta-nos Paulo Catry, biólogo, que esteve de viagem por estas terras longínquas.

Ilha Victoria, Canadá, Julho 2022

Foi numa sexta-feira de inverno na década de 1980. O metro de Lisboa ia completamente apinhado à hora de ponta. Um homem grisalho perguntava a um colega, “Duarte, amanhã vamos às douradinhas?”. Poucos, além do Duarte, devem ter sentido o vento do Norte que se fez sentir no ar abafado da carruagem, como uma aragem que corresse solta na lezíria. Era de tarambolas-douradas Pluvialis apricaria que se falava, bem-entendido. Eu ouvi e calei, demasiado tímido. Mas fiquei a pensar naquilo e estes anos depois ainda me vem à cabeça, enquanto contemplo os voos nupciais de douradinhas de outra estirpe Pluvialis dominica no Ártico canadiano.

Douradinha ou tarambola-dourada Pluvialis dominica do continente americano. No Brasil, onde se encontra amiúde nas pastagens do sul durante o inverno boreal, esta espécie é conhecida por batuiruçu, batuíra-do-campo ou maçarico-do-campo. Foto: Paulo Catry

O Ártico tem o condão de espalhar viajantes (e desejos) por praticamente todas as terras e todos os mares do planeta. Não há refúgio possível do engodo, das negaças que o alto da Terra lança ao inocente naturalista. É lá nesse extremo que nascem, numa fulgurante diversidade, a grande maioria dos mais fantásticos migradores que existem. Moleiros, gaivotas-de-sabine, garajaus-do-ártico, falaropos, habitantes pelágicos dos sete mares, dos oceanos abertos. Êideres que conseguem sobreviver nas fendas do mar gelado, na longa noite do grande inverno do Norte. Mobelhas de plumagem axadrezada de gritos potentes e misteriosos. Gansos que se juntam em bandos nos sapais e nas várzeas dos climas temperados frios. Pilritos, borrelhos e tarambolas presentes nos estuários e nas praias tropicais do mundo inteiro. Ou aves mais enxutas, como estas douradinhas canadianas, que invernam nas pampas argentinas e nos campos amplos do Uruguai e do sul do Brasil.

Êideres Somateria mollissima e Somateria spectabilis no mar gelado. Foto: Paulo Catry

Ilha Victoria. Há menos de dois séculos habitavam aqui inuítes (também conhecidos por esquimós – termo que vai caindo em desuso) que não tinham ainda contactado, nem sequer indiretamente, com o mundo moderno. Ainda há 100 anos atrás, de inverno moravam em igloos sobre o gelo marinho e caçavam focas (focas e mais nada), nicho ecológico partilhado com os ursos-polares. De verão erguiam tendas de peles e pescavam nos rios e lagos e perseguiam caribus. Tão desprovidos e autossuficientes que nem crenças religiosas tinham, como testemunharam os primeiros missionários franceses que aqui habitaram nos anos 1930*. Os inuítes ainda cá estão, mas agora vivem em casas de madeira e dos subsídios governamentais, em nome das possessões árticas canadianas. Caçam ainda, usando tecnologias modernas mas com a mentalidade antiga de quem viu a fome de demasiado perto. As focas-oceladas também permanecem, repousam espalhadas por sobre o oceano ainda completamente gelado neste início de verão. Há sempre algumas fissuras no gelo que dão acesso ao mar a quem respira o oxigénio do vento, sejam mamíferos ou sejam aves marinhas.

Tundra na ilha Victoria, Ártico canadiano. Foto: Paulo Catry

A caça manda que os lobos brancos que por aqui moram se mantenham afastados e escondidos. Felizmente a tundra é vasta, esta ilha que é duas vezes maior que Portugal tem apenas duas povoações e menos de três mil habitantes. Assim, e apesar da caça inuíte, a vida abunda nos inúmeros lagos e prados da paisagem sem fim. Mais notórios são os gansos selvagens (4 espécies), as mobelhas (3) e os cisnes (1), pelo seu tamanho e pelo comportamento ruidoso. Lebres e raposas-do-ártico são os mamíferos mais visíveis. Os lemingues e os bois-almiscarados estão numa fase baixa dos seus respetivos ciclos. As limícolas, uma dúzia de espécies, são mais discretas, mas omnipresentes.

Pilrito-rasteirinho Calidris pusilla a incubar na tundra. Foto: Paulo Catry

Nesta terra improvável as aves do largo oceano vivem confinadas em pequenos lagos. Já os caribus fazem travessias marítimas, migrando anualmente sobre o gelo entre o continente e a enorme ilha. O sol não se põe durante dois meses do estio e as estrelas não se apagam durante o mês de Dezembro e parte de Janeiro (quando a temperatura média do ar são 32 graus abaixo de zero, por vezes chegando as mínimas aos 53 negativos). Mas quando for inverno a maioria dos migradores estará longe. Migradores como os falcões-peregrinos cujos ninhos se encontram agora facilmente, no chão, nada escondidos. 

Quase todos os mamíferos e até algumas aves ficam no inverno impossível. Os corvos, por exemplo, que são da mesma espécie Corvus corax que se encontra pelas nossas latitudes (ainda que se lhes note um sotaque diferente na voz, bem como algumas frases que nunca tinha até aqui ouvido). Que exemplo da arte da sobrevivência!

Mobelha-de-bico-amarelo Gavia adamsii. Foto: Paulo Catry

Mesmo de verão o clima é duro: frio, cinzento, ventoso. É fácil encontrar o silêncio por aqui, todas as coisas estão espaçadas, bem dispersas na tundra. Quase só o ruído do vento, mais um grito distante de um grou invisível. Espaço bidimensional, tudo é horizonte. Até os deuses se cansaram e partiram desta paisagem desolada; e todavia há sempre vida que se adapta e resiste. São mesmo daqui as aves que, mais que todas as outras, nos enfeitiçam com as viagens do céu infinito. 

*Roger Buliard 1949. Inuk, au dos de la terre. Nouvelles Editions Latines, Paris


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.