O que procurar no Outono: salsaparrilha

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Quem não se lembra dos Estrumpfes, também conhecidos como “The Smurfs”? Esta espécie de pequenos duendes azuis que vestiam, na sua maioria, calças, gorro e sapatos brancos e viviam em casinhas em forma de cogumelo numa aldeia escondida no meio da floresta, divertiram muitas gerações. O que a maioria não sabe é que o seu alimento preferido são as folhas de uma pequena planta trepadeira: a salsaparrilha (Smilax aspera).

A salsaparilha

A salsaparrilha pertence ao género Smilax, o único género que compõe a família Smilacaceae, com cerca de 260 espécies aceites em todo o mundo. Em Portugal estão representadas quatro espécies do género.

Foto: Christian Ferrer/WikiCommons

As plantas que compõem esta família são maioritariamente trepadeiras, herbáceas ou lenhosas, com uma distribuição nativa muito alargada, que compreende as regiões temperadas e tropicais de todo o Mundo.

A salsaparrilha é conhecida por muitos outros nomes comuns: salsaparrilha-do-reino, salsaparrilha-bastarda, alegra-cão, alegra-campo, recama, salsaparrilha-brava, salsaparrilha-rugosa, salsaparrilha-indígena, sarçaparrilha, alegação ou legação.

É uma planta arbustiva, trepadeira, com caules flexíveis, lenhosos, trepadores ou rastejantes, que podem atingir até 15 metros de altura.

As folhas são verdes e possuem uma grande plasticidade morfológica, podendo variar bastante no tamanho e forma. Esta variabilidade deve-se muito em particular às condições ecológicas do local onde os espécimes crescem e se desenvolvem, nomeadamente a exposição solar e os ventos.

Podem ser grandes ou pequenas e ter forma cordiforme, lanceolada, sagitada ou até mesmo reniforme. São agudas, sem pelos, coriáceas e, ocasionalmente, possuem manchas brancas.

Foto: Hans Hillewaert/WikiCommons

A margem da folha é inteira e espinhosa e as nervuras são proeminentes, casualmente com espinhos na página inferior. Na base da folha surgem duas bainhas estipulares, presas ao pecíolo, de onde nascem duas gavinhas, uma por cada estípula, não ramificadas e muito retorcidas.

Como é uma espécie dióica, as flores, masculinas e femininas, crescem em indivíduos diferentes. A época de floração inicia-se no final do verão, em meados de agosto, e pode prolongar-se até ao início do mês de dezembro.

As flores surgem dispostas em inflorescências axilares ou terminais, em conjuntos de 3 a 9 flores femininas ou de 6 a 25 flores masculinas. São pequenas, perfumadas, pouco vistosas, de cor amarelo-esverdeada, por vezes brancas, ou só esverdeadas.

Os frutos são bagas globosas, que surgem em cachos. São verdes, depois amarelos, vermelhos e quase pretos, quando maduros. A maturação dos frutos ocorre entre fevereiro e abril. Casa fruto contém 1 a 3 sementes, pequenas, ovoides ou subglobosas, lisas ou ligeiramente rugosas, castanho-avermelhadas e brilhantes.

Trepadeira nativa

A salsaparrilha é nativa de climas mediterrânicos, sendo comum no sul da Europa, no sul e sudoeste da Ásia, no norte e zonas tropicais de África e na região da Macaronésia.

Em Portugal é comum um pouco por todo o território continental, sendo mais frequente nas regiões da Estremadura, Ribatejo, Beira Litoral, Douro Litoral, Minho e ausente das regiões do interior Norte e Centro.

Esta planta também ocorre naturalmente no arquipélago dos Açores, onde coabita com outra espécie do mesmo género, a Smilax azorica. Trata-se de uma espécie endémica do Arquipélago do Açores, presente nas Ilhas de Santa Maria, São Miguel, Pico, Faial, São Jorge, Graciosa e Terceira.

Foto: Hans Hillewaert/WikiCommons

No arquipélago da Madeira não há registo da presença desta espécie. No entanto, existem duas outras espécies do género: a Smilax canariensis (espécie nativa das ilhas Canárias e da Madeira) e a Smilax pendulina, uma espécie endémica do referido arquipélago. 

A salsaparrilha vegeta bem em ambiente esclerófilo, tanto em locais com exposição solar plena, como em zonas sombrias e em quase todo o tipo de substrato, embora prefira os solos húmidos, soltos e bem drenados. Requer alguma proteção contra ventos fortes para melhor desenvolvimento e produção abundante de flores. Tolera temperaturas baixas, até -10ºc, e suporta bem a geada e longos períodos de seca. No entanto, a humidade no solo é fundamental para promover o seu crescimento.

Pode encontrar-se em bosques e matos perenifólios, formados por árvores e arbustos tipicamente mediterrânicos, em que predominam a azinheira (Quercus rotundifolia), o sobreiro (Quercus suber), os carvalhos (Quercus sp.), os pinheiros (Pinus sp.), as estevas (Cistus sp.), os zimbros (Juniperus sp.), a aroeira (Pistacia lentiscus), o trovisco (Daphne gnidium), o aderno-de-folhas-estreitas (Phillyrea angustifolia), a madressilva (Lonicera implexa), o sanguinho-das-sebes (Rhamnus alaternus), entre outras. Também pode surgir em bosques ripícolas, matagais, sobre muros e sebes e em diversos tipos de coberto vegetal degradado.

Ecologicamente importante

No meio natural, esta planta desempenha um importante papel ecológico para a vida selvagem.

Os frutos da salsaparrilha são insípidos e pouco atraentes para os humanos, não sendo aconselhável a sua ingestão, mas são uma fonte de alimento fundamental para muitas espécies de aves.

A sua facilidade de trepar pela vegetação vizinha, permite-lhe formar densos e impenetráveis matagais, que se tornam locais de abrigo e refúgio importantes para alguns animais, nomeadamente aves galináceas e pequenos mamíferos que necessitam de um bom esconderijo, sobretudo em época de caça.

Foto: Júlio Reis/WikiCommons

Apesar de ser uma planta silvestre, a salsaparrilha pode ser utilizada como planta ornamental. O perfume e o efeito visual das suas flores amarelo-esverdeadas ou brancas e das suas bagas sucessivamente verdes, amarelas, vermelhas e negras, tornam esta modesta planta trepadeira uma interessante solução para jardins e espaços verdes.

É uma planta ideal para revestir paredes, muros, cercas ou treliças, plantada diretamente na terra, ou em vasos e floreiras, necessitando apenas de um tutor ou sistema de suporte, onde se possa fixar e prosperar.

Usos terapêuticos

A salsaparrilha também é reconhecida como planta medicinal. São-lhe atribuídas propriedades depurativas, diuréticas, sudoríficas, antitússicas, expectorantes e anti-helmínticas. Os níveis de toxicidade da planta são elevados, sobretudo nas bagas, que não devem ser ingeridas.

As raízes e os rebentos desta planta são comestíveis, e têm sido usadas em medicina tradicional para reduzir os níveis de colesterol, prevenir pedra nos rins, melhorar os sintomas de doenças reumáticas e da pele, como acne, eczema ou herpes.

Como acontece com qualquer outra planta medicinal, antes de iniciar qualquer tratamento deverá consultar-se um médico, pois o seu consumo pode causar irritação nos rins e no sistema urinário se forem ultrapassadas as doses recomendadas. O consumo em doses muito altas é contraindicado em pacientes com diabetes, insuficiência cardíaca ou com problemas de hipertensão, por exemplo.

Foto: Daniel Villafruela/WikiCommons

Em meados do século XX, as substâncias tónicas presentes na raiz desta planta, transformaram-na numa bebida refrescante, não alcoólica, chamada xarope de salsaparrilha, precursora da Coca-Cola e muito popular na época, a par do xarope de groselha e do capilé.

Em algumas regiões da Europa os rebentos jovens são colhidos e confecionados como os espargos, misturados com ovos ou em saladas.

A salsaparrilha também pode ter aplicações em tinturaria, podendo obter-se um corante vermelho a partir das estípulas.

A lenda de Smilax e Crocus

Existem diferentes versões sobre a origem da designação científica desta espécie, mas todas envolvem a mitologia grega. O nome do género Smilax deriva do mito que fala na relação de “amor proibido” entre a bela e jovem ninfa Smilace (Smilax) e um jovem mortal, espartano, de nome Krokos. Segundo a lenda, ambos terão morrido por amor, tendo Krokos sido transformado pelos deuses numa planta de açafrão (Crocus) e Smilace terá sido transformada numa planta trepadeira, para crescer nas proximidades e pudessem ficar juntos por toda a eternidade.

O restritivo específico aspera deriva do latim e significa “áspero ou irritado”, possivelmente referindo-se à dureza dos ramos e das folhas e pela presença dos pequenos espinhos na planta, que lhe confere uma sensação de aspereza quando tocada.

A beleza natural desta planta passa muitas vezes despercebida aos nossos olhos, mas basta um olhar mais atento para perceber o que de belo podemos encontrar. Explore e procure esta belíssima trepadeira. E lembre-se, onde há uma salsaparrilha é possível que exista por perto uma aldeia com pequenos Estrumpfes.


Dicionário informal do mundo vegetal:

Cordiforme – folha com forma de coração.

Lanceolada – folha com forma de lança.

Sagitada – folha em forma de seta, isto é, em forma de triângulo agudo, prolongando-se na base em duas aurículas ou lóbulos agudos, dirigidos para baixo.

Reniforme – folha com forma de um rim.

Pecíolo – pé da folha que liga o limbo ao caule.

Gavinha – estrutura filamentosa, resultante da transformação da extremidade dos ramos, que tem a faculdade de se enrolar em hélice, através da qual as plantas se conseguem fixar a suportes.

Estípula – estrutura semelhante a uma pequena folha, que se encontra na base do pecíolo, geralmente aos pares, uma de cada lado.

Dióica – espécie que apresenta flores unissexuadas, femininas e masculinas, ocorrendo em indivíduos diferentes.

Inflorescência – forma como as flores estão agrupadas numa planta.

Endémica – espécie nativa de uma região, com uma distribuição muito restrita.

Ambiente esclerófilo – locais cujas formações vegetais estão bem adaptadas às condições de secura. A vegetação característica destes ambientes é composta por espécies arbóreas e arbustivas, providas de folhas duras, coriáceas, recobertas por uma cutícula protetora.

Bosque perenifólio – formado por plantas com folhagem que persiste, na árvore, ao longo de todo o ano.


Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.

Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas. 

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