Trabalhando com a vida selvagem: Andreia Dias captura e coloca emissores em aves de rapina protegidas

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Andreia Dias, bióloga, especializou-se na captura e na colocação de emissores em aves de rapina para ajudar a saber mais sobre estes animais e a conservá-los melhor. Pelas suas mãos já passaram o condor-dos-Andes, a águia-pesqueira, o abutre-preto, o grifo e tantas outras espécies. Todas a impressionaram.

WILDER: O que faz?

Andreia Dias: Sou bióloga, mestre em Gestão e Conservação da Natureza, doutorada em Biologia/biodiversidade pela Universidade de Barcelona. Integro a equipa de especialistas em fauna do Ministério do Meio Ambiente espanhol. No momento, entre outros trabalhos, capturo aves, especialmente aves de rapina com estatuto de conservação e coloco-lhes emissores, quer nas que capturo, quer em ninhos ou em centros de recuperação. 

W: Onde e quando começou?

Andreia Dias: O primeiro contacto com o “mundo” das capturas e colocação de emissores surgiu no meu estágio no projecto “Aquila“, de conservação da águia-real no Parque Nacional da Peneda-Gerês, em 2003, quando o técnico do Ministério do Meio Ambiente espanhol, Víctor García Matarranz, foi capturar aquele que na altura era o último casal desta espécie no Parque. 

Mais tarde, participei com ele nas capturas e colocação de emissores em adultos de águia de Bonelli no âmbito do Projecto Life Natureza “Conservação de Populações Arborícolas de Águia de Bonelli no Sul de Portugal”. E a vontade de aprender estas técnicas foi crescendo…

W: Como aprendeu a fazer o seu trabalho?

Andreia Dias: Em 2009 obtive permissão do Ministério do Meio Ambiente espanhol, actualmente Ministério para la Transicíon Ecológica y el Reto Demográfico, para acompanhar o seu técnico especialista nos trabalhos de captura, manuseio e colocação de emissores em aves e formar-me nesta área. 

Assisti a mais de uma centena de colocações de emissores por Víctor García, antes de colocar o primeiro de forma autónoma. Desde quebra-ossos e abutres-pretos nos Pirinéus a gaivotas-de-audouin no delta do Ebro foram vários os projectos em que participei. 

Isto sem nunca deixar de trabalhar em projectos muito interessantes como a reintrodução da águia-pesqueira em Portugal e na Suíça. 

O nome original desta espécie é “guincho” (a toponímia denuncia-o, como a “Praia do Guincho”) nome ainda utilizado, por exemplo, na Madeira, Canárias e Cabo-Verde. “Guincho-comum” é também o nome comum da gaivota (Larus ridibundus) o que pode levar a alguma confusão. “Águia-pesqueira”, à semelhança da designação espanhola “águila pescadora” e mesmo da galega “aguia peixeira”, é utilizado desde meados do século XIX apesar do nome científico “Pandion haliaetus” revelar não ser uma águia.  Por esta razão, parece-me difícil voltar a ser mais conhecida por “guincho”. 

Retomando o meu trajeto, em simultâneo com o que vinha a referir, desenvolvi a tese de doutoramento com a população arborícola de águias de Bonelli do Sul de Portugal, pela Universidade de Barcelona, e finalizei a formação do Ministério do Meio Ambiente para capturar e colocar emissores em aves.

W: Quando começou, o que pensava que queria fazer?

Quando comecei, queria fazer exactamente o que faço, participar em projectos o mais diversos possível, com uma variedade enorme de espécies, na sua maioria com estatuto de conservação, mas também espécies menos emblemáticas. Aprender não só a dinâmica dos trabalhos, mas também as características das espécies e poder observá-las de perto, investigando comportamentos, aprendendo diferenciações de plumagens, etc. 

Capturar não é chegar a um local, pôr uma armadilha ou rede, e esperar. Requer uma preparação de todos os detalhes técnicos que implica o estudo comportamental da espécie e que varia com o local. 

Colocar emissores é também um processo detalhado e delicado sem que provoque danos ao animal e obedece a protocolos. O método que mais utilizo, “Garcelón”, é um dos métodos de colocação de emissores conhecidos como “de mochila” que exigem um estudo exaustivo das biometrias da espécie e um conhecimento profundo do tipo de materiais a utilizar. 

O arnês é cosido com pontos à altura do peito do animal, denominado “ponto de rotura”, de forma a permitir a libertação do emissor e que todas as cintas da “mochila” caiam em simultâneo de modo a não provocar dano.

O número de pontos e o tipo de fio variam consoante a espécie e é distinto marcar indivíduos adultos de juvenis. Colocar emissores em juvenis é ainda mais delicado e incorpora outras técnicas. 

Não se colocam emissores por “capricho”. Se colocados de forma correcta, não provocam qualquer dano ao animal e fornecem informações que um observador humano não pode facultar. 

Um estudo com dados de 24 anos, de indivíduos de cinco espécies de aves de rapina marcados com emissores por este método, permitiu obter informações de 659 aves dos quais 196 foram necropsiados por veterinários e nenhuma apresentava qualquer tipo de dano causado pelo emissor ou arnês.

W: Há umas semanas participou na colocação de emissores nas águias-rabalvas que serão reintroduzidas na natureza, em Espanha, neste Outono. Como foi a sua experiência com estas águias?

Andreia Dias: Tive contacto com esta espécie na Finlândia e na Holanda e visitando o projecto de reintrodução na Escócia. 

Em Espanha, quando soubemos que teríamos que colocar emissores nos juvenis do projecto de reintrodução, tratámos, como sempre, de fazer o estudo prévio e recolher o máximo possível de medidas de indivíduos adultos que nos foi consentido no Parque temático francês “Puy du Fou” e nos zoos de Madrid, Lisboa e Santo Inácio. 

As biometrias são importantes não só para a colocação de arneses em juvenis que ainda não atingiram as dimensões de um indivíduo adulto, mas também para determinar o sexo do animal. Geralmente, nas aves de rapina, as fêmeas são maiores do que os machos e existem medidas que os podem distinguir, já que a diferenciação através da plumagem normalmente não é fácil e praticamente impossível em juvenis. Deste modo, podemos adaptar as medidas do arnês mediante o sexo da ave. Foi um estudo muito interessante, enriquecedor e com um grande leque de aplicação.

W: Pode explicar um pouco o que vai fazer a seguir e qual a importância desses projectos?

Andreia Dias: O que vou fazer a seguir, é normalmente o meu “amanhã”. Estou a capturar abutres-do-Egipto na Andaluzia, dois dias depois estarei a colocar emissores em abutres-pretos nos Pirinéus, e depois a capturar uma águia-imperial na Extremadura…

O Ministério do Ambiente apoia projectos muito diversificados desenvolvidos por entidades públicas, as Juntas Autónomas, Universidades e ONG. 

Na Galiza, por exemplo, um projecto da Universidade de Alcalá de Henares visa estudar o comportamento do bútio-vespeiro em meio florestal, utilizando-o como indicador ecológico de ninhos de vespas asiáticas, já que incorporou esta vespa na sua dieta constituindo a maioria das presas que consome. Neste caso, os emissores, além das variáveis comuns que facultam – tais como definição de áreas de caça, velocidade e altitude de voo, etc. – dão indicações que podem ajudar na localização dos ninhos das vespas que tantos problemas estão a causar. 

Na Universidade de Barcelona, os abutres-do-Egipto capturados e marcados num aterro sanitário permitirão estudar de que forma estes indivíduos utilizam estas estruturas para se alimentarem, bem como detectar a presença de contaminantes nos indivíduos e consequentemente no meio. 

A captura e colocação do emissor é acompanhada, muitas vezes, de colheita de amostras (sangue, penas e outros) que permitem a detecção de parasitas, agentes patogénicos e muitos outros componentes (antibióticos, contaminantes, etc).

Muitas vezes, aquando da construção de parques eólicos, centrais fotovoltaicas ou outras infraestruturas perto de territórios de espécies ameaçadas, são colocados emissores para estudar a interacção entre as espécies e as referidas infraestruturas, avaliando o seu impacte. 

Emissores em abutres, (abutre-negro e grifos) ajudam a detectar casos de envenenamento e a descoberta de autores destes crimes ambientais. 

Em aves que entram em centros de recuperação, posteriormente libertadas, possibilitam o seu acompanhamento. 

As espécies migratórias podem ser monitorizadas.

Numa harpia na Amazónia Equatoriana, permitirá identificar e prevenir ameaças à espécie bem como servir de alerta aos que continuam a exterminar estes animais. A população será informada de que o indivíduo é portador de um emissor e que em caso de morte, será possível encontrar o autor do delito.

Surgem constantemente novos projectos.

W: Qual foi a espécie que já teve nas mãos que mais a impressionou?

Andreia Dias: “Impressionar”, todas impressionam. Aliás, cada exemplar que tenho nas mãos, que sempre tento seja pelo menor tempo possível, causa-me uma série de sentimentos, nem que seja a enésima vez que manuseio a espécie. 

Mas a mais emocionante, foi o condor dos Andes. Foi uma captura muito complicada, a 4.100 metros de altitude, onde todas as contrariedades aconteceram. Ter esta espécie na mão, foi um privilégio.

W: O que é preciso saber/fazer para manusear aves de grande porte? Por exemplo, vai trabalhar com a harpia, que é a maior ave de rapina das Américas…

Andreia Dias: Trabalhar com este tipo de aves exige muita experiência de manipulação. Acidentes acontecem. O facto de uma colega não ter experiência em segurar um grifo, provocou-me uma cicatriz no queixo; por má interpretação, uma águia-rabalva do Zoo de Santo Inácio ficou agarrada à minha perna…

As técnicas que nos permitem manipular as aves em segurança têm que ser bem dominadas. Como, por exemplo, a colocação de caparão, técnica ancestral utilizada por cetreiros que reduz o stresse do animal e a protecção das garras que impede que as aves se magoem e a quem as manipula.

W: O que ainda lhe falta descobrir ou fazer?

Andreia Dias: Muitíssimo… Aprendo todos os dias. Diariamente sou confrontada com situações novas, muitas vezes, dificuldades que surgem em meios hostis (no alto de uma montanha nos Pirinéus, nos Andes, ou em sítios desérticos, longe de tudo, muitas vezes sem comunicação). Constantemente surgem desafios que obrigam ao desenvolvimento de novos sistemas de captura, investigação e melhoria de sistemas de colocação de emissores, utilização de novas tecnologias… Com a aprendizagem de uns projectos, procuro melhorar outros. Gosto de viajar e de aprender, mas também de transmitir conhecimento, sempre com o intuito da conservação das espécies, logo da Natureza. Posso não concordar com objectivos e execução de alguns, mas a minha função é responsabilizar-me na correcta e segura colocação de emissores nas espécies alvo. Uma vida não chega para descobrir e fazer tudo o que sonho…


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Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.