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Primavera em casa: Ana está a tornar o seu jardim num oásis para a vida selvagem

A nossa casa pode ser também a casa para inúmeras espécies selvagens, servindo de abrigo ou local para fazerem ninho e criarem a sua descendência. É isso o que acontece no jardim de Ana Correia, técnica de Sistemas de Informação Geográfica.

 

Ana Correia, 30 anos, vive na Escócia, a Norte de Glasgow, onde trabalha como técnica de Sistemas de Informação Geográfica.

Está a transformar o seu jardim com cerca de 280 metros quadrados num oásis para a vida selvagem, apostada em criar “todo um ecossistema”, onde vivem ou por onde passam ouriços-cacheiros, ratinhos, morcegos, inúmeras espécies de aves, borboletas e abelhões.

 

 

Esta apaixonada pelo mundo natural começou a jardinar para a natureza ainda quando vivia em Portugal, na sua varanda na Margem Sul. “Era uma pequena selva urbana que muito irritava os meus pais, apesar de eles a tentarem manter o melhor que podem agora que não estou por lá!”, contou à Wilder.

Quando se mudou para a Escócia foi morar para um apartamento com jardim comum. “Acabei por falar com os vizinhos e comecei a arranjar o jardim aos poucos.”

Para aprender mais, fez voluntariado num pequeno jardim em Glasgow, “The Hidden Gardens”. Lá descobriu mais sobre as espécies de plantas da Escócia, fez observação de aves e insectos e compostagem.

Mas só quando conseguiu o seu próprio espaço, há pouco mais de dois anos, é que tudo começou a ganhar forma.

“No primeiro dia que nos mudámos para esta casa, tinha uma carta da pessoa que aqui vivia antes de nós. Dizia ela numa parte algo como ‘deixo-te um comedouro de pássaros novo no barracão do quintal e algumas ‘fat balls’ assim como um bebedouro. Gostava que alguém continuasse a cuidar eles’.  Isso foi talvez a primeira coisa que coloquei no jardim, a estrutura onde hoje coloco todos os comedouros.”

Tinha, finalmente, a liberdade para fazer o que quisesse. “Mas ainda assim é um longo caminho entre saber que queremos algo e chegar a esse resultado. Tem sido, e continua a ser, um caminho cheio de descobertas!”, salientou Ana Correia.

 

 

“Jardinar para a vida selvagem não é apenas ter um jardim bonito e com flores. É criar todo um ecossistema. É deixar que esse ecossistema surja e não interferir. É aceitar aquela erva daninha porque é benéfica mesmo que não esteja no melhor sitio. É uma espécie de caos organizado onde após alguns anos se espera que a intervenção do “jardineiro” seja mínima.”

Passados cerca de dois anos, o jardim de Ana Correia ainda não está terminado.

 

O jardim de Ana Correia

Hoje, o jardim tem 18 árvores, oito das quais são árvores de fruto. Além das árvores, Ana Correia também plantou “arbustos, plantas que dão flor de Inverno, plantas que dão flor na Primavera, no Verão, no Outono. Essa foi uma das preocupações. Tentar que o jardim seja atractivo não apenas na Primavera e Verão mas que seja um habitat durante todo o ano”.

“Plantei uma cama de flores selvagens que é uma espécie de caos organizado e fica de pé durante todo o ano para que os pássaros tenham acesso a sementes e para que sirva de abrigo e local de hibernação para outros animais.”

Sempre que possível, tenta utilizar materiais que tem à disposição. Seja as mudas de plantas oferecidas por um vizinho, sejam os tijolos velhos que estavam à entrada da floresta e que usou para construir o canteiro para as flores selvagens, sejam as pedras que encontra quando escava para delimitar canteiros e outras estruturas. Ou o pneu que faz de canteiro.

São várias as tarefas para ajudar a biodiversidade no seu jardim.

 

 

“Primeiro, cuidar da vida do solo. Para isso, nenhum químico sintético é introduzido. Enriquecimento do solo é feito a longo prazo à medida que folhas e ramos caem e apodrecem. Funciona um pouco como o solo de uma floresta. As folhas caem, ficam, apodrecem e vão enriquecendo o solo.”

Também não existe no jardim o conceito de “pragas” ou de ervas “daninhas”. “Tudo faz parte do jardim. Temos muitos pulgões? As joaninhas comem. Temos muitas lesmas? O ouriço-cacheiro come. Há muitas minhocas ou lagartas? Os pássaros comem. Mas sobretudo há o prevalecer da ideia de que “se o teu jardim não está a ser comido por alguma coisa, então não faz parte do ecossistema”.

Inicialmente, Ana Correia focou-se em ajudar os insectos. “Plantei plantas benéficas para insectos, várias espécies de plantas aromáticas e mais tarde plantei uma área de cerca de três metros quadrados com flores selvagens.”

“Depois, à medida que conhecia melhor o meu jardim, percebi que certas espécies de pássaros se preferem manter em zonas de arbustos e foquei-me na criação de áreas mais densas para eles. No início da Primavera removo algum musgo, relva seca, pequenos pauzinhos e coloco perto dos comedouros para eles levarem para fazer ninhos. Entretanto este ano coloquei ninhos pela primeira vez. Vamos ver o que acontece!”

Entretanto, Ana Correia começou a preparar determinadas áreas para que um ouriço-cacheiro visitante pudesse hibernar. “Temos uma casa própria que comprámos mas criei também um monte de ‘lixo de jardim’, com os restos de podas e de relva seca e entretanto há um ratinho do campo a viver lá!”

 

 

“Tenho uma zona sombria atrás do barracão onde coloquei vários bocados de troncos para que se decomponham, plantei fetos, amoras, alguns bolbos de espécies que surgem na floresta da zona onde vivo e já encontrei alguns répteis nessa zona.”

O próximo projecto é a criação de um charco, que é um elemento que atraí muitas espécies, e a colocação de ninhos para morcegos, apesar de já ter morcegos a viver no telhado lá de casa (é uma casa antiga com telhado de placas de xisto).

 

Os animais do jardim da Ana

Dois anos de jardinagem para a natureza já estão a dar frutos.

“Temos muitos pássaros que inicialmente vinham apenas aos comedouros e que agora se espalham por todo o jardim” e, durante dois anos, “tivemos um casal de melros a utilizar a barraca da lenha para nidificar”.

 

 

Além de aves, o jardim é visitado por vespas solitárias, que fazem ninho dentro do barracão, ratinhos, ouriços caixeiros e “imensos insectos”. “Temos um ninho de abelhões debaixo do barracão.”

E depois “temos imensos animais que vivem no solo e dependem do solo, muitos dos quais eu confesso não saber o nome!”

 

 

“E os morcegos que chegam à noite e nos livram das malvadas “midgets” que são uns insectos muito chatinhos e do excesso de traças.”

Mas entre todas estas espécies visitantes, Ana Correia tem algumas que recorda com especial carinho.

“No Verão passado começei a encontrar uns cócós “incomuns” e tanto espiei que lá descobri um ouriço-cacheiro a passear pelo quintal! Creio que ele utiliza o nosso barracão (além de elevado, foi cavado por baixo) como um dos ninhos para hibernação! Fiquei muito feliz, mesmo!! E todos os dias de manhã lá ia eu ver se encontrava mais cócós.. acreditem ou não, identificação de fezes de animais selvagens é um dos tópicos mais frequentes em grupos de jardinagem para a vida selvagem!”

“Saber que um ouriço-cacheiro visita o nosso quintal é uma grande recompensa por todo o trabalho que tem sido feito e deixa-me muito feliz!”

 

 

Mas, acima de tudo, aquilo que Ana Correia mais gosta de presenciar é a mudança. “As pequenas mudanças semana a semana, mês a mês, ano a ano. E como, pouco a pouco, as coisas se vão encaminhando para o resultado final que quero. E como é preciso esperar e ser paciente para se chegar esse resultado, através de trabalho e dedicação.”

E também a mudança “em nós, que nos tornamos mais institivos, menos dependentes de livros de instruções e (…) mais unos com a vida natural”. A par da mudança que o jardim trás às outras pessoas.

“Pessoas que primeiro nos acham um bocadinho estranhos mas que, na Primavera, nos perguntam que flores são aquelas que têm tantas borboletas.”

Ana Correia tem vizinhos que têm o quintal acimentado com estruturas para evitar que os pássaros lá pousem e que lhe perguntam se podem atirar comida para os pássaros. Um deles “diz que adora chegar do trabalho e ficar a olhar para o nosso jardim e que lhe trás imensa paz!”

 

 

Tem ainda “vizinhos idosos que gostam de se vir sentar no meu jardim a apanhar sol.”

E nestes tempos de pandemia por causa do Covid-19, o jardim “é o local onde os problemas deixam de existir. Não apenas agora com o Covid-19 mas no geral. O trabalho correu mal, jardim. Estou um bocadinho mais stressada, jardim. Passado alguns minutos a nossa mente fica tão focada naquilo que estamos a fazer ou na sequência das actividades que ainda queremos fazer naquele dia que acabo por me abstrair completamente do mundo exterior. O tempo passa de uma maneira diferente.”

 

[divider type=”thick”]Saiba mais.

Acompanhe aqui a vida no jardim de Ana Correia através da página que criou no Facebook.

 

[divider type=”thick”]Agora é a sua vez.

A nossa casa pode ser um lugar de biodiversidade. Se tem alguma espécie selvagem que encontra abrigo ou alimento na sua casa, conte-nos o seu testemunho e a sua história enviando um email para [email protected].

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.