Na madrugada de domingo as aves vão cantar para si

Este é um espectáculo que não cobra entradas nem tem limite de lugares sentados. Na madrugada deste domingo celebra-se o Dia Internacional do canto das aves ao amanhecer (Dawn Chorus International Day), um dos maiores momentos da natureza na Primavera. Aqui tem uma mão-cheia de ideias para o aproveitar ao máximo. 

 

Antes de sair de casa há algumas coisas que convém saber. Gonçalo Elias, responsável pelo portal Aves de Portugal, e João E. Rabaça, professor da Universidade de Évora e coordenador do LabOr-Laboratório de Ornitologia, ajudam-no a compreender melhor o que vai ouvir na madrugada de dia 3 de Maio.

 

Por que cantam as aves na Primavera?

Normalmente quem se ouve a cantar são os machos, diz João E. Rabaça. Estes cantam para marcar e defender o seu território contra machos concorrentes. “Quando um melro-preto canta, está a transmitir um sinal para os seus vizinhos da mesma espécie cujo significado é semelhante a dizer ‘este espaço aqui é meu’. E os seus conspecíficos não só entendem a mensagem como podem responder”, explica. Além disso, diz Gonçalo Elias, os machos cantam para atrair as fêmeas que com eles queiram acasalar.

E mais do que o estado do tempo, o que desencadeia o canto nas aves é o aumento do comprimento dos dias. “Há estudos que sugerem que o ciclo de crescimento dos dias, que se observa a partir de finais de Dezembro (após o solstício de Inverno), desencadeia um processo químico no cérebro das aves, estimulando-as a cantar”, conta Gonçalo Elias. “E, de facto, com base nas observações que tenho feito ao longo dos anos, posso afirmar que no nosso país em Janeiro já se ouvem mais espécies a cantar que em Dezembro. E em Fevereiro este fenómeno acentua-se e praticamente todas as espécies residentes podem ser ouvidas a cantar com frequência, mesmo que os dias ainda estejam muito frios”.

 

Por que cantam as aves de madrugada?

Para João E. Rabaça, “o coro matinal das aves é uma das mais expressivas paisagens sonoras da natureza”. Mas porquê? Poderão existir várias razões. “As aves que compõem o coro matinal são espécies com hábitos diurnos e, como tal, é importante que logo com as primeiras notas de luz do dia os machos sinalizem os seus territórios, porque se não o fizerem outros poderão ocupá-los.” Gonçalo Elias explica que “aquela é a hora mais calma do dia, em que a energia necessária para cantar é aproveitada de forma mais eficiente. Há menos ruído ambiente, causado pelo vento ou pelos insectos, por exemplo, e por isso os sons das aves fazem-se ouvir melhor.”

Durante o resto do dia, é possível ouvir aves em canto embora a sua frequência e intensidade não sejam comparáveis às que se registam às primeiras horas da manhã, sobretudo na Primavera e no Verão.

 

Qual a diferença entre um canto e um chamamento?

O canto é um atributo de cada espécie, é ostentado maioritariamente pelos machos e apresenta uma estrutura melódica definida; os chamamentos correspondem a sons muito simples, sem estrutura melódica e são emitidos por ambos os géneros, explica João E. Rabaça.

 

E agora, prepare um chá ou um café quente e leve-o consigo para o jardim ou espaço verde mais próximo. Aqui ficam algumas dicas.

 

A que horas devemos sair de casa?

No domingo, dia 3 de Maio, o Sol nasce às 06h38. O espectáculo começa cerca de 1h40m antes do nascer do Sol, explica Gonçalo Elias. “Para poder ouvir tudo desde o início é conveniente estar no local a partir das 05h00 ou até alguns minutos antes.”

 

Quais os melhores locais?

O ideal é ser um sítio sossegado, com pouco ruído ambiente, nomeadamente o causado por motores ou veículos. Também é desejável que seja um sítio com vegetação bem desenvolvida (árvores ou arbustos), pois nestes locais a abundância de aves é geralmente superior. Pode ser um jardim público, uma quinta, uma margem de uma ribeira. O ideal será visitar o sítio um dia antes, durante o dia, para verificar os acessos e as características do local. E já agora para ver se há lá aves.

 

Que aves pode estar a ouvir?

Segundo Gonçalo Elias, as primeiras aves a “acordar” e que começam a cantar logo aos primeiros alvores são os turdídeos, como o melro-preto, o rabirruivo-preto ou o pisco-de-peito-ruivo. Seguem-se outras insectívoros, como as toutinegras e a carriça. Um pouco mais tarde juntam-se os granívoros, como o tentilhão e o pintassilgo. Algumas espécies, como o rouxinol-comum ou o rouxinol-grande-dos-caniços, cantam durante toda a noite e para essas não se pode falar de um verdadeiro “começo”. Além disso, a existência de luz artificial, como a iluminação pública, pode interferir com os ciclos de canto das aves. “Já ouvi carriças e piscos-de-peito-ruivo a cantar a meio da noite, mas só em sítios com luz artificial.”

 

João E. Rabaça diz que tudo depende do sítio do país e do habitat. “De qualquer modo, podemos dizer que o melro-preto é um das aves mais madrugadoras (…). Ademais, o seu canto é um dos mais ricos e variados da nossa avifauna.”

 

Portugal vai participar no Dia Internacional do canto das aves ao amanhecer

 

O Dia Internacional realiza-se no primeiro domingo de Maio desde os anos 1980, quando o naturalista britânico Chris Baines organizou o primeiro evento para celebrar o seu 40º aniversário. Pediu aos seus amigos para chegarem às 04h00 para poderem apreciar juntos o canto das aves. Desde então, a iniciativa é celebrada nos quatro cantos do planeta. Este ano, a associação A Rocha vai participar com uma actividade no coração da Ria de Alvor, no Algarve.

“O evento vai ter lugar na sede da nossa organização que é uma casa de campo bem no coração da Ria de Alvor, entre Portimão e Lagos”, conta à Wilder Marcial Felgueiras, director de Operações da associação.

Marcial conhece bem o canto das aves ao amanhecer. “A experiência por si é algo de mágico. É como observar um início límpido de um novo dia, um novo começar, novas oportunidades e a possibilidade de irmos mais além de nós próprios”, acrescenta.

Além de ser um momento único, pode ajudar a Ciência. “Conseguem-se alguns dados importantes, como saber quais as espécies mais madrugadoras.”

Na madrugada de domingo, os membros da associação A Rocha, e quem mais se lhe quiser juntar, têm uma boa ideia das aves que poderão ouvir. Desde 2011 que são feitas anilhagens todos os meses. Segundo a lista de aves anilhadas em Abril/Maio de 2014, nesta altura do ano foram registadas espécies como o melro, chapim-real, chapim-azul, pardal, pega-azul, pintassilgo, tentilhão, verdelhão, chamariz e aves de rapina nocturnas, como o mocho-galego.

 

[divider type=”thin”]Para ir treinando o ouvido…

Antes do “concerto” treine o ouvido com estes sites que disponibilizam sons de aves e de paisagens.

No Xeno Canto – site de partilha de sons de aves de todo o mundo, poderá fazer pesquisas por espécie de ave. Os resultados são mostrados num mapa que tem também informação sobre a ocorrência da espécie. Por exemplo, experimentámos pesquisar o melro (Turdus merula); das dezenas de gravações procurámos as realizadas em Portugal e ouvimos 14 segundos de melro no Redondo.

Pode também ouvir as Paisagens Acústicas Naturais de Portugal, sobre as quais já escrevemos, acedendo à página principal do projecto e ainda a alguns materiais neste site e também neste.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.